Amok, (O Doido da
Malásia), Stefan Zweig, 1922
Carta de uma
Desconhecida, 1922
A Colecção
Invisível (Um episódio da inflação alemã), 1925
Segredo Ardente,
1911
Os três primeiros contos do autor austríaco Stefan Zweig
encontrei-os na Biblioteca Municipal do Seixal – Pólo de Amora,
reunidos num volume da Livraria Civilização Editora, uma antiga
edição que ainda utiliza a antiga ortografia, enquanto que “Segredo
Ardente” é uma edição recente da Relógio d’Água cuja
tradução segue o novo acordo ortográfico. A verdade é que esta
descoberta, ou revisitação? foi um desafio do clube de leitura da
Bertrand do Chiado de partilha da obra deste autor austríaco. A obra
de Zweig é vastíssima e multifacetada quanto aos géneros
literários, sendo que a leitura seguida destes quatro contos ou
novelas tão sui generis motivou-me a, no futuro, ir ler
outras obras, nomeadamente algumas biografias.
Em “Amok”, o
narrador vem de Calcutá em direcção a Nápoles, ansioso por
escrever sobre as sensações experimentadas na sua viagem ao
Oriente, mas o ambiente no barco não é propício nem à reflexão
nem ao silêncio. Quando à noite tenta na amurada do transatlântico
em que viaja encontrar alguma pausa no bulício da viagem, tem um
encontro singular com um homem que tinha, durante sete anos,
trabalhado como médico numa aldeia isolada da Malásia, entre
“animais e indígenas”. Na base da sua necessidade de falar sem
parar, de contar o porquê do seu regresso à Europa está o encontro
com uma mulher da sociedade que lhe pedira um acto médico que ele
recusou e por cuja morte ele se sente responsável. Isso provocou
nele um estado de profundo transtorno emocional que costuma ser
atribuído a certos povos malaios, designado por amoque. É um conto
simples, mas onde são vertidos temas como o dever e o direito, as
convenções sociais e a hipocrisia que muitas vezes nelas se
esconde, a honra, a relação de poder entre médico e paciente, as
barreiras sociais e o racismo quando o branco é “um senhor” e um
indígena não passa de “um miserável amarelo” e como uma
relação pode tornar-se obsessiva e descontrolada.
“Carta de uma
Desconhecida” passa-se em Viena. É um conto pungente, uma
confissão, um testamento. Através de uma carta dirigida a um homem
que é um romancista muito na moda, uma desconhecida confessa-lhe o
seu amor incondicional, o amor que foi alimentando como único desde
os treze anos e que ele nunca foi capaz sequer de perceber, mesmo
tendo estado tão perto. Ela nunca foi mais do que uma desconhecida,
uma entre tantas, alguém invisível, um brinquedo que ele usou. Ele
a quem ela trata por “bem-amado” era um homem culto, requintado,
a viver na alta sociedade e sem sequer ter olhos para a vizinha
pobre, filha de uma viúva de um funcionário das finanças. Ela é
sem dúvida uma heroína romântica, que deifica o objecto do seu
amor, que não desiste dessa paixão e que de tudo é capaz para,
como mãe solteira criar o filho, indiferente a normas sociais como a
vergonha ou a honra. Como a certa altura ela escreve na sua carta
“amou como uma escrava, como um cão”. De novo aqui, o tema do
amor, apaixonado e total em confronto com o amor fugaz e
interesseiro, é o cerne do conto. Mas outros temas como as
diferenças de classe, a dedicação dos criados aos seus senhores, a
violência doméstica, a pobreza logo que se nasce numa maternidade
que é lugar para pobres, o estatuto de mãe solteira são alguns
aspectos que valorizei nesta minha leitura. Será que as rosas
brancas que uma desconhecida lhe enviava no dia do aniversário
conseguirão despertar nele, a partir de agora, o amor que ele nunca
soube descobrir enquanto ela foi viva?
Também
em “A Colecção Invisível”, a história é contada ao narrador
por um antiquário de regresso a Berlim, depois de um episódio
acabado de viver e que ele sente necessidade de partilhar com alguém,
neste caso também um desconhecido que é seu companheiro de viagem.
Devido à inflação e à especulação daí resultante, certos
produtos são muito cobiçados e o antiquário necessita adquirir
estampas e gravuras, pelo que decide contactar um velho coleccionador
que fazia parte dos seus contactos, mas com quem há muito não fazia
nenhuma transacção e daí empreender uma viagem até sua casa.
Tratava-se de um grande coleccionador de estampas e de obras de
grandes pintores como Dürer e Rembrandt que, entretanto cegara. O
período difícil da 1ª grande guerra obrigara a mulher e a filha a
desfazerem-se aos poucos da valiosa colecção para poderem
sobreviver sem que ele se tivesse apercebido de que a sua colecção
já não existia. Para o velho coleccionador a visita do antiquário
foi uma enorme felicidade, pois foi a rara oportunidade para dar a
mostrar a um perito a sua colecção preciosa, desconhecendo que em
vez das raridades que coleccionara estava afinal a mostrar-lhe
simples folhas de papel que a mulher e a filha ali tinham posto em
substituição das verdadeiras estampas. Como diria Goethe “os
coleccionadores são pessoas felizes” e, embora cego, o
coleccionador continuava a ver com toda a clareza as cores, os
matizes, a delicadeza e força das estampas que tinha comprado com
tanto amor quando ainda tivera a capacidade de as ver e apreciar. No
final, reconhecido com a visita de uma pessoa tão conhecedora da
matéria, o coleccionador fez prometer ao antiquário que ficasse com
a incumbência de leiloar a sua preciosa colecção de estampas para
que com o dinheiro do leilão a família pudesse viver
desafogadamente após a sua morte! Há um pacto de silêncio entre as
mulheres e o antiquário, um acto de misericórdia e de amor pelo pai
cego totalmente desconhecedor que a sua preciosa colecção há muito
se evaporara para poderem subsistir. Há um respeito, uma
sensibilidade nestas personagens que é tocante.
“Segredo
Ardente” foi o último livro que li de Stefan Zweig. É um estudo
psicológico muito completo de três personagens: um homem frívolo,
uma jovem mulher e o seu filho Edgar de 12 anos. Com o objectivo de
seduzir a mulher, qual caçador em busca de uma presa, o barão vai
ganhar a confiança do rapazinho, tímido, nervoso, emocionalmente
carente e ingénuo, para chegar até ela, pois ele sabe que “é
incrivelmente fácil enganar uma criança”. Edgar, primeiramente
radiante por encontrar naquele estranho alguém que o ouve e lhe dá
atenção e amor, passa por diferentes fases quando percebe que
afinal aquela amizade era falsa: incompreensão, ciúme, despeito,
desconfiança e ódio. E a intensa vontade de deixar de ser criança
e passar para a fase de adulto, para perceber os adultos! A mãe é
uma mulher emocionalmente carente, facilmente seduzida por alguém
que é mestre a manipular sentimentos. Ela vive um período da sua
vida de adulta em que sente que precisa fazer escolhas e se confronta
com questões como ser mãe ou ser mulher, viver a vida ou
sacrificar-se. E para um predador como é o barão, aquela mãe e o
filho são afinal presas demasiado fáceis. Mas serão?
As quatro novelas
escritas nas primeiras décadas do século passado têm uma unidade e
traços que seguem um padrão que as identificam como saídas da
escrita de uma mesma pessoa. As personagens são apaixonadas, os
sentimentos são intensos e profundos e os narradores são simples
instrumentos, meios de comunicação e de transporte da torrente de
sensações que chegam assim até nós leitores/as. As personagens
são fortes e bem caracterizadas e nem precisamos saber como se
chamam. Simplesmente são. As descrições das paisagens e dos
ambientes são também elas fortes e detalhadas. A escrita é visual
e límpida, sem necessidade de floreados ou rodeios desnecessários.
Em poucas folhas, quatro contos, quatro dramas.
Como referi no
início, a obra de Zweig é imensa e o autor foi um escritor
infatigável. Difícil é conseguir imaginar ter atingido tão
elevada capacidade de reflexão e escrita e em géneros tão
diferentes. Certamente o detalhe de análise psicológica das suas
personagens teve influências na sua ligação e amizade a Freud,
assim como a muitas outras figuras da cultura do início do século
passado.
Almerinda Bento
Maio 2018
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