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quarta-feira, 23 de maio de 2018

A Convidada Escolhe: Novelas de Stefan Zweig


 

Amok, (O Doido da Malásia), Stefan Zweig, 1922
Carta de uma Desconhecida, 1922
A Colecção Invisível (Um episódio da inflação alemã), 1925
Segredo Ardente, 1911

Os três primeiros contos do autor austríaco Stefan Zweig encontrei-os na Biblioteca Municipal do Seixal – Pólo de Amora, reunidos num volume da Livraria Civilização Editora, uma antiga edição que ainda utiliza a antiga ortografia, enquanto que “Segredo Ardente” é uma edição recente da Relógio d’Água cuja tradução segue o novo acordo ortográfico. A verdade é que esta descoberta, ou revisitação? foi um desafio do clube de leitura da Bertrand do Chiado de partilha da obra deste autor austríaco. A obra de Zweig é vastíssima e multifacetada quanto aos géneros literários, sendo que a leitura seguida destes quatro contos ou novelas tão sui generis motivou-me a, no futuro, ir ler outras obras, nomeadamente algumas biografias.
Em “Amok”, o narrador vem de Calcutá em direcção a Nápoles, ansioso por escrever sobre as sensações experimentadas na sua viagem ao Oriente, mas o ambiente no barco não é propício nem à reflexão nem ao silêncio. Quando à noite tenta na amurada do transatlântico em que viaja encontrar alguma pausa no bulício da viagem, tem um encontro singular com um homem que tinha, durante sete anos, trabalhado como médico numa aldeia isolada da Malásia, entre “animais e indígenas”. Na base da sua necessidade de falar sem parar, de contar o porquê do seu regresso à Europa está o encontro com uma mulher da sociedade que lhe pedira um acto médico que ele recusou e por cuja morte ele se sente responsável. Isso provocou nele um estado de profundo transtorno emocional que costuma ser atribuído a certos povos malaios, designado por amoque. É um conto simples, mas onde são vertidos temas como o dever e o direito, as convenções sociais e a hipocrisia que muitas vezes nelas se esconde, a honra, a relação de poder entre médico e paciente, as barreiras sociais e o racismo quando o branco é “um senhor” e um indígena não passa de “um miserável amarelo” e como uma relação pode tornar-se obsessiva e descontrolada.
“Carta de uma Desconhecida” passa-se em Viena. É um conto pungente, uma confissão, um testamento. Através de uma carta dirigida a um homem que é um romancista muito na moda, uma desconhecida confessa-lhe o seu amor incondicional, o amor que foi alimentando como único desde os treze anos e que ele nunca foi capaz sequer de perceber, mesmo tendo estado tão perto. Ela nunca foi mais do que uma desconhecida, uma entre tantas, alguém invisível, um brinquedo que ele usou. Ele a quem ela trata por “bem-amado” era um homem culto, requintado, a viver na alta sociedade e sem sequer ter olhos para a vizinha pobre, filha de uma viúva de um funcionário das finanças. Ela é sem dúvida uma heroína romântica, que deifica o objecto do seu amor, que não desiste dessa paixão e que de tudo é capaz para, como mãe solteira criar o filho, indiferente a normas sociais como a vergonha ou a honra. Como a certa altura ela escreve na sua carta “amou como uma escrava, como um cão”. De novo aqui, o tema do amor, apaixonado e total em confronto com o amor fugaz e interesseiro, é o cerne do conto. Mas outros temas como as diferenças de classe, a dedicação dos criados aos seus senhores, a violência doméstica, a pobreza logo que se nasce numa maternidade que é lugar para pobres, o estatuto de mãe solteira são alguns aspectos que valorizei nesta minha leitura. Será que as rosas brancas que uma desconhecida lhe enviava no dia do aniversário conseguirão despertar nele, a partir de agora, o amor que ele nunca soube descobrir enquanto ela foi viva?
Também em “A Colecção Invisível”, a história é contada ao narrador por um antiquário de regresso a Berlim, depois de um episódio acabado de viver e que ele sente necessidade de partilhar com alguém, neste caso também um desconhecido que é seu companheiro de viagem. Devido à inflação e à especulação daí resultante, certos produtos são muito cobiçados e o antiquário necessita adquirir estampas e gravuras, pelo que decide contactar um velho coleccionador que fazia parte dos seus contactos, mas com quem há muito não fazia nenhuma transacção e daí empreender uma viagem até sua casa. Tratava-se de um grande coleccionador de estampas e de obras de grandes pintores como Dürer e Rembrandt que, entretanto cegara. O período difícil da 1ª grande guerra obrigara a mulher e a filha a desfazerem-se aos poucos da valiosa colecção para poderem sobreviver sem que ele se tivesse apercebido de que a sua colecção já não existia. Para o velho coleccionador a visita do antiquário foi uma enorme felicidade, pois foi a rara oportunidade para dar a mostrar a um perito a sua colecção preciosa, desconhecendo que em vez das raridades que coleccionara estava afinal a mostrar-lhe simples folhas de papel que a mulher e a filha ali tinham posto em substituição das verdadeiras estampas. Como diria Goethe “os coleccionadores são pessoas felizes” e, embora cego, o coleccionador continuava a ver com toda a clareza as cores, os matizes, a delicadeza e força das estampas que tinha comprado com tanto amor quando ainda tivera a capacidade de as ver e apreciar. No final, reconhecido com a visita de uma pessoa tão conhecedora da matéria, o coleccionador fez prometer ao antiquário que ficasse com a incumbência de leiloar a sua preciosa colecção de estampas para que com o dinheiro do leilão a família pudesse viver desafogadamente após a sua morte! Há um pacto de silêncio entre as mulheres e o antiquário, um acto de misericórdia e de amor pelo pai cego totalmente desconhecedor que a sua preciosa colecção há muito se evaporara para poderem subsistir. Há um respeito, uma sensibilidade nestas personagens que é tocante.
“Segredo Ardente” foi o último livro que li de Stefan Zweig. É um estudo psicológico muito completo de três personagens: um homem frívolo, uma jovem mulher e o seu filho Edgar de 12 anos. Com o objectivo de seduzir a mulher, qual caçador em busca de uma presa, o barão vai ganhar a confiança do rapazinho, tímido, nervoso, emocionalmente carente e ingénuo, para chegar até ela, pois ele sabe que “é incrivelmente fácil enganar uma criança”. Edgar, primeiramente radiante por encontrar naquele estranho alguém que o ouve e lhe dá atenção e amor, passa por diferentes fases quando percebe que afinal aquela amizade era falsa: incompreensão, ciúme, despeito, desconfiança e ódio. E a intensa vontade de deixar de ser criança e passar para a fase de adulto, para perceber os adultos! A mãe é uma mulher emocionalmente carente, facilmente seduzida por alguém que é mestre a manipular sentimentos. Ela vive um período da sua vida de adulta em que sente que precisa fazer escolhas e se confronta com questões como ser mãe ou ser mulher, viver a vida ou sacrificar-se. E para um predador como é o barão, aquela mãe e o filho são afinal presas demasiado fáceis. Mas serão?
As quatro novelas escritas nas primeiras décadas do século passado têm uma unidade e traços que seguem um padrão que as identificam como saídas da escrita de uma mesma pessoa. As personagens são apaixonadas, os sentimentos são intensos e profundos e os narradores são simples instrumentos, meios de comunicação e de transporte da torrente de sensações que chegam assim até nós leitores/as. As personagens são fortes e bem caracterizadas e nem precisamos saber como se chamam. Simplesmente são. As descrições das paisagens e dos ambientes são também elas fortes e detalhadas. A escrita é visual e límpida, sem necessidade de floreados ou rodeios desnecessários. Em poucas folhas, quatro contos, quatro dramas.
Como referi no início, a obra de Zweig é imensa e o autor foi um escritor infatigável. Difícil é conseguir imaginar ter atingido tão elevada capacidade de reflexão e escrita e em géneros tão diferentes. Certamente o detalhe de análise psicológica das suas personagens teve influências na sua ligação e amizade a Freud, assim como a muitas outras figuras da cultura do início do século passado.
Almerinda Bento
Maio 2018







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