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sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A Convidada escolhe: "Os Cus de Judas"

“Os Cus de Judas”, António Lobo Antunes, 1979

Há precisamente um ano, andava eu a ler “Memória de Elefante” jurei a mim própria que tinha de ultrapassar a ideia feita/preconceito de que é muito difícil ler António Lobo Antunes, embora sobre as suas crónicas o consenso seja altamente favorável. A verdade é que fui acumulando livros deste autor que me iam sendo oferecidos, e como tinha de começar por uma ponta, decidi-me entrar na obra de A. Lobo Antunes, por ordem cronológica. Depois de “A Memória de Elefante”, passei a “Os Cus de Judas”, o segundo livro do autor.

Este livro que ele dedica ao amigo Daniel Sampaio, começa com a profunda ironia de um narrador que nos fala da sua infância muito ligada aos animais do Jardim Zoológico, dado viver perto do Jardim e portanto não ser alheio aos sons dos animais e às suas características. Mas, de todo aquele mundo de animais, a sua maior e mais agradável memória prende-se com o rinque de patinagem e a elegância do professor preto “rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas”(pág. 9). Em contraponto a estas memórias ruidosas, luminosas e felizes, a casa das tias na Barata Salgueiro cheirava a mofo e a velho e os reparos que lhe faziam sobre a sua magreza, apenas viam a tropa como salvação para vir a tornar-se um homem. Até que chegou esse dia em que “a tribo” se foi despedir dele no dia em que embarcou para Angola.

O resto do livro, ao longo de 23 capítulos de A a Z, é a memória da guerra, desde a chegada a Luanda, de onde seguiam para “os cus de Judas” os lugares para onde eram mandados para morrer, “em nome de ideais veementes e imbecis, em dois anos de angústia, de insegurança e de morte” (pág. 26). Esse longo relato de memórias, de flashes da sua experiência nesses “cus de Judas” é feito pelo narrador a uma mulher com quem está num bar ao fim da tarde e prolonga-se até ao amanhecer do dia seguinte no apartamento do narrador. Ácido, irónico, contundente, sarcástico, traz consigo a realidade da repressão, da PIDE, do salazarismo, da violência fascista, da Mocidade Portuguesa, das senhoras do Movimento Nacional Feminino, da União Nacional. O medo da morte, a solidão, o desamparo, a angústia são os sentimentos possíveis naquele absurdo para onde foram lançados um milhão e quinhentos mil homens que passaram por África. Os homens que deixaram as mulheres grávidas, que só souberam da notícia do nascimento das filhas e filhos por aerograma, que regressaram tristes e carregados de silêncios.

“Trazemos o sangue limpo, Isabel: as análises não acusam os negros a abrirem a cova para o tiro da PIDE, nem o homem enforcado pelo inspector na Chiquita, nem a perna do Fernando no balde dos pensos, nem os ossos do tipo de Mangando no telhado de zinco. Trazemos o sangue tão limpo como o dos generais nos gabinetes com ar condicionado de Luanda, deslocando pontos coloridos no mapa de Angola, tão limpo como o dos cavalheiros que enriqueciam traficando helicópteros e armas em Lisboa, a guerra é nos cus de Judas, entende, e não nesta cidade colonial que desesperadamente odeio, a guerra são pontos coloridos no mapa de Angola e as populações humilhadas, transidas de fome no arame, os cubos de gelo pelo rabo acima, a inaudita profundidade dos calendários imóveis” (pág. 188).

O regresso a Lisboa, à cidade feliz da sua infância, das lembranças dos animais do Jardim Zoológico e do professor negro que ensinava as meninas a patinar, é o regresso a uma cidade que o acolhe com indiferença, tal como as tias que ao vê-lo “envergando um fato de antes da guerra que me boiava na cintura” (pág. 195), apenas conseguem mostrar o seu desagrado:

 – Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.” (pág. 196)

Impossível ficar indiferente ao que foi a guerra colonial, contada com a crueza de quem a viveu e que decidiu trazê-la a público, através de uma escrita dura e elaborada. Impossível ficar indiferente.

9 de Setembro de 2024

Almerinda Bento

 

 

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