“A Guerra não tem Rosto de Mulher”,
Svetlana Alexievich, 2013
Enquanto fui lendo este livro, fui
acompanhando pelos media o
aumento preocupante do conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Sabendo
nós o que os órgãos de comunicação social nos querem fazer crer,
com encontros entre líderes, declarações solenes de parte a parte,
retiradas estratégicas, receios de provocações, a verdade é que
no dia em que terminei o livro, parece que o conflito está cada vez
mais eminente. Nem a propósito, a ler um livro sobre a II Guerra
Mundial, sobre o sofrimento do povo russo na perspectiva das
mulheres, aquelas que estiveram na guerra mas que a sociedade russa
fez por as esquecer e silenciar.
Svetlana Alexievich, que ganhou o Prémio
Nobel da Literatura em 2015 pela sua “escrita
polifónica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época”,
é natural da Bielorrússia e
a viver em Minsk, com a profissão de jornalista, quis, com este
livro, publicado nos anos 80, ouvir as vozes das mulheres que
combateram nas trincheiras, que estiveram na linha da frente e que,
depois da guerra, não só não foram reconhecidas como fundamentais
no esforço de guerra, como, muitas vezes foram ostracizadas e
vilipendiadas.
É um livro brutal, duro. A autora quis
ouvir na primeira pessoa muitas centenas de mulheres cujas vozes
gravou e que depois transcreveu numa polifonia única. Recordações
de um tempo em que eram jovens com pouco mais de dezasseis anos,
desejosas de combater e derrotar o inimigo nazi. A recolha destes
testemunhos, que levou a autora a percorrer todo o país, iniciou-se
nos anos 80, sendo que o livro foi recusado durante dois anos pela
censura, por “não ter ideias
soviéticas” (pág. 35), por
“mostrar a sujidade da
guerra” (pág. 37) e porque
“Não precisamos da sua
pequena história, precisamos de uma grande história. A história da
Vitória” (pág. 39). Ainda
hoje, o governo bielorrusso proíbe a edição dos seus livros que
são lidos em russo e vendidos aos milhões.
“Começou a perestroika de
Gorbachev… O meu livro foi logo publicado, teve uma tiragem
vertiginosa: dois milhões de exemplares. Foi o tempo em que
aconteciam muitas coisas impressionantes, de novo lançámo-nos com
ímpeto não sabíamos bem para onde. De novo, para o futuro. Ainda
não sabíamos (ou então esquecemos) que a revolução é sempre uma
ilusão, sobretudo na nossa história” (pág.
30)
Este livro é de tal forma único e rico
em testemunhos – “um coro de vozes” – que se torna difícil
escrever sobre ele, escolher. O meu exemplar está repleto de
anotações, sublinhados, dá vontade de transcrever tudo; imagino
como terá sido hercúlea a tarefa da autora a “limpar” e deitar
fora material de entre tudo o que recolheu, ouviu e gravou, para que
resultasse nesta obra incrível.
“Os relatos femininos são
diferentes e falam de coisas diferentes. A guerra «feminina» tem as
suas cores, os seus cheiros, a sua iluminação e o seu espaço de
sentimentos. Tem as suas palavras. Nesta guerra, não há heróis nem
proezas incríveis, mas tão-só as pessoas ocupadas na sua
actividade humana e simultaneamente desumana. Lá, não são só
elas, as pessoas, a sofrer, mas também a terra, os pássaros, as
árvores. Todos os que habitam a terra connosco. Estes sofrem sem
palavras, o que é ainda mais horrível.”
… “Quero escrever a história
desta guerra. A história feminina” (pág.
16)
Constituído por dezassete capítulos, o
livro começa com o registo de excertos do diário do livro, onde a
autora fala da influência que “Sou de uma Aldeia em Chamas” de
Ales Adamóvitch teve na sua obra e explica a sua estranheza por tudo
o que lera sobre a guerra ter exclusivamente “voz
masculina” e perceber que as
mulheres, embora sendo protagonistas, estiveram sempre caladas,
ninguém quis ouvir as suas vozes, dando como exemplo os casos da mãe
e da avó. Os louros da vitória foram para os homens. Elas só foram
homenageadas passados 30 anos sobre a guerra. Ao ir ao encontro
daquelas que são as protagonistas do seu livro, mesmo passados
tantos anos, sentiu que algumas tinham dificuldade em se libertar de
uma narrativa da época (a verdade comum), sentindo-se constrangidas
a contar a sua história, havia as que em dado momento já não
conseguiam continuar “Não me
quero lembrar” (pág. 47),
mas também as que tinham ânsias de contar os detalhes, como as
coisas se passaram (a verdade pessoal). “Por
que é que só agora vieste ouvir-nos?”
disseram-lhe algumas das narradoras.
De que falam aquelas mais de três
centenas de narradoras de “A Guerra não tem Rosto de Mulher”,
aquelas raparigas russas de 1941? De solidão, de dúvidas, de medo,
de ódio, de amor à Pátria, de vingança, de perdão, de
reconciliação, de sentimentos de culpa, da roupa de homem que
tiveram de vestir, de amor, de fervor ideológico, de escolhas
dolorosas. Da fome e da solidariedade das populações sem o apoio
das quais a vitória não teria sido possível. Dos cercos a
Leninegrado e Estalinegrado. Os riscos e sacrifícios extremos dos
partisans
e sector clandestino bem documentados no capítulo “Sobre batatas
miudinhas…” talvez um dos mais duros.
Elas ocuparam todas as profissões e não
só as relacionadas com a enfermagem. Muitas estiveram na linha da
frente, o lugar mais desejado por elas fruto do fervor ideológico e
da convicção de que o inimigo seria vencido em pouco tempo,
estiveram nos tanques, na Marinha, mas também nos “bastidores”:
cozinheiras, lavadeiras, bombeiras, padeiras, fotógrafas,
abastecedoras, no serviço postal, engenheiras civis… E as
sapadoras, as que ficaram depois da guerra e que tiveram de ficar no
terreno a desminar os campos.
Terminada a guerra é o vazio para muitas
delas. A esperança de que no fim da guerra todos se amariam
rapidamente se esvai. As terras perderam os seus homens, as famílias
estão desfeitas, elas sentem-se velhas. Muitos olham para elas com
desconfiança, rotulam-nas de EC “esposas de campanha” (pág.
292). Receavam que ninguém quisesse casar com elas e os homens não
as protegeram. A guerra terminara, mas para elas ia começar uma nova
guerra. Os traumas que trouxeram da guerra ficaram e permanecem.
Termino transcrevendo alguns excertos
deste que foi o primeiro livro de Svetlana Alexievich e sobre o qual
só tenho a dizer: leiam-no. Não mais o vão esquecer.
“Tenho pena dos que vão ler este
livro e dos que não o vão ler…” (frase
de uma das vozes deste livro. (pág. 33)
“Eu tinha uma trança muito bonita,
saí já sem ela… sem a trança… Cortaram-me o cabelo à
soldado.” “E não me devolveram o vestido. Não me deram tempo de
entregar o vsetido e a trança à minha mãe. Ela pedira muito para
ficar com alguma coisa minha.” (pág.
51)
“A primeira vez é terrível…
Mesmo terrível…”(pág.
54)
“Mesmo que regresses viva de lá, a
alma dói-te” (pág. 62)
“Certa vez, durante os exercícios…
Não consigo lembrar-me disso sem chorar, não sei porquê… Era
Primavera. Terminámos o exercício de tiro e regressávamos ao
acampamento. Apanhei umas violetas. Um raminho pequeno, que atei à
baioneta.” (pág. 98)
“Porque sobrevivi? Para quê? Penso…
No meu entender, para poder contá-lo…”(pág.
135)
“Recordar é terrível, mas não
recordar é mais terrível ainda.”
(pág. 159)
“Depois da guerra nunca mais voltei
a ser jovem.” (pág. 189)
“Todos ansiavam chegar vivos ao dia
da Vitória” (pág. 277)
“Para os sapadores a guerra acabou
uns anos depois da guerra… Imagine o que é estar à espera de uma
explosão depois da Vitória? Estar à espera daquele instante…Oh,
não! A morte depois da Vitória é a mais horrorosa. É como morrer
duas vezes” (pág. 279)
“Não enterro o meu marido, enterro
o meu amor.” (pág. 286)
“Acho que, se não me tivesse
apaixonado na guerra, não teria sobrevivido. O amor salvava.
Salvou-me a mim.” (pág.
292)
“Na guerra nunca sorria”
“Na altura da minha partida para a
frente, as cerejeiras do nosso pomar estavam em flor”
(pág. 296)
“Será que é possível escrever
sobre isto? Dantes não se podia…” (pág.
373)
19 de Fevereiro de 2022
Almerinda Bento