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terça-feira, 6 de agosto de 2019

A Escolha do Jorge: "Schlump"



“A juventude é pródiga, vive no paraíso e nem se apercebe quando a verdadeira felicidade lhe bate à porta.” (p. 26)
“Um rouxinol entoava toda a felicidade que transbordava do seu pequeno coração. Fazia-o de modo tão nostálgico, tão doce, tão ditoso, como se no mundo ainda houvesse coisas como o amor, como a felicidade.” (p. 153)

A edição de Schlump do alemão Hans Herbert Grimm (1896-1950) em língua portuguesa constitui seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano a cargo da PIM! Edições que nos presenteia com um volume de luxo, cuja capa mantém a mesma da edição original, publicada anonimamente em 1928.
Com o subtítulo de Histórias e aventuras do desconhecido soldado Emil Schulz, chamado «Schlump», narradas pelo próprio, este romance constitui um grito de protesto sobre o absurdo da guerra, além de manifestamente ter um discurso anti-militarista e anti-fascista, razões que estiveram na origem de o livro ter sido queimado nos autos-de-fé nazis na década de 30.

A partir de então, Schlump caiu no esquecimento até ser reencontrado em 2013 e publicado no ano seguinte, 85 anos após a primeira edição e um século após o início da 1ª Guerra Mundial (1914-1918).
São muitas as informações que nos levam a concluir que este romance tem muito de autobiográfico atendendo ao facto de Hans Herbert Grimm ter participado na 1ª Guerra Mundial.
Schlump divide-se em três partes: o entusiasmo, a desilusão e a crença na humanidade pelo amor como superação do horror da guerra.
Com 17 anos, o jovem Schlump toma a decisão patriótica de se alistar como voluntário na guerra que se acreditava que iria ser breve. É destacado numa pequena localidade francesa desempenhando funções semelhantes às de regedor da comunidade, sendo responsável por controlar a população nos seus afazeres diários. A par do patriotismo, as funções atribuídas e a descoberta da sexualidade junto das jovens que vai conhecendo fazem aumentar a auto-estima de Schlump desenvolvendo a ideia de que a guerra era, afinal de contas, algo maravilhoso que tinha acontecido na sua vida, tornando-se uma peça fundamental na gestão da pequena localidade inimiga onde se ouvia à distância, de vez em quando, o barulho da artilharia.
Com muito humor, a primeira parte deste romance apresenta-nos a guerra como algo ligeiro aos olhos de um adolescente a quem os seus congéneres alemães confiaram no desempenho das suas funções. A sua capacidade para se desenrascar no intuito de resolver situações inesperadas é inigualável tanto quanto caricata, daí que a ideia demonstrada da guerra afastada do campo de batalha é também absurda.
A segunda parte do romance tem como pano de fundo alguns dos cenários de guerra, as trincheiras, e a ideia de uma guerra infernal sem um fim em concreto à vista. Schlump fora destacado para uma das trincheiras onde assistiu ao inimaginável, ao horror que nunca nenhum ser humano deveria presenciar.
Não são muitas as descrições sobre as mortes, o armamento utilizado, as condições de sobrevivência, desde a alimentação passando pela contínua falta de descanso, no entanto são descrições de episódios muito gráficos, intensos, esmagadores que nos leva a reflectir sobre as razões da guerra.
Milhares de vítimas mortais dos dois lados das barricadas, muitas vezes em luta corpo-a-corpo, jovens que desperdiçaram o tempo e a vida numa guerra inútil e sem préstimo sem que alguma vez venham a ser reconhecidos por alguma coisa.
A fome, o desalento, às precárias condições no dia-a-dia, os amigos mortos em combate, os episódios com cenas horríveis de plena carnificina tornam esta guerra duradoura tanto quanto absurda. O tempo vai passando e a desilusão face à guerra instala-se perante uma vitória que, afinal não se concretizou.
“Já ocupavam aquela posição há vinte dias. A cal mordia-lhe as costas, havia sempre uns pedaços que lhe entravam pela roupa quando rastejava para entrar no bunker. Tinha feridas nas mãos que não saravam. Lama desde há vinte dias, só lama, já não havia uma palavra cordial, só se praguejava.
Como são felizes os que levam um tiro num braço ou numa perna. Estão em casa, podem deitar-se na cama e dormir, dormir, dormir.
Schlump estava terrivelmente desiludido com aquela guerra. E a oportunidade de realizar um ato heroico teimava em nunca mais chegar.” (p. 142)
Schlump é ferido numa destas cenas de guerra sangrenta e a desilusão não poderia ser maior face à guerra interminável sendo que o excerto que se segue dá-nos uma ideia do horror vivido entre mortos e feridos dos dois lados do conflito.
Schlump jazia entre os mortos, no campo de batalha, inconsciente, em seu redor sangue e mais sangue, farrapos ensanguentados, membros humanos e pedaços de equipamento, tudo enegrecido do sangue.” (pp. 150-151)
A terceira parte do romance coincide com a fase final do conflito, numa luta desesperada por parte da Alemanha em singrar e levar todo o esforço, todo o sacrifício do país a uma vitória. Era decisivo este combate, era o milagre que faltava e que nunca chegou. Era o desespero que vestia a farpela do entusiasmo que de nada serviu.
Era uma febre que a todos atingia. Um entusiasmo diferente do de 1914. Era o entusiasmo do desespero. Agora, só precisamos de um general, de uma ideia grandiosa, e estes soldados realizariam um milagre como o mundo nunca viu. Schlump esteve a ponto de voltar a oferecer-se como voluntário. Só que as experiências vividas na retaguarda e quando regressava a casa já lhe haviam roubado a inocência. «Mesmo que ganhemos», disse para si mesmo, «quem receberá as honras não será o herói imundo que anda na trincha, mas os dos uniformes a reluzir; nessa altura eles chegam-se à frente, quando agora, que chove fogo, fogem.» Não se ofereceu como voluntário.” (p. 219)
No meio de tanto horror, mortes, feridos, mutilados, destruição e sem que a compreensão processe todas aquelas imagens e acontecimentos, não deixa de ser notável como a crença na humanidade e num amanhã onde se pode ser feliz é possível. Schlump deixa-nos uma mensagem de amor como a única possibilidade de almejar a paz entre os homens e as nações em oposição ao absurdo da guerra. Se o homem aprendeu a matar sem dó nem piedade, sem sentido e sem critério, terá agora, em período de paz e de reconstrução, de reaprender a amar.
Hans Herbert Grimm deixa alguns recados às gerações futuras. Apesar de Schlump não ter alcançado um sucesso retumbante à data da sua edição, o romance não deixa de reflectir algumas ideias destemidas no final dos anos 20 quando a Alemanha vivia uma crise económica profunda a par da humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, daí que o nacionalismo fervoroso da extrema-direita tenha adquirido expressão com o Partido Nazi que subiria ao poder no início da década de 30.
Schlump nunca poderia ter sido bem acolhido no seio dos ideais nazis sendo destruído nos auto-de-fé por se apresentar uma obra que põe a ridículo o fascismo, o militarismo e, em última instância, a guerra.
Os excertos finais selecionados fazem eco disso mesmo como alertas deixados por Hans Herbert Grimm para as gerações futuras face à responsabilidade dos governantes na criação do bem-estar da sociedade, daí a fragilidade dos estados democráticos que na sequência de populismos e pequenos nadas os estados podem ser conduzidos à pobreza, à ruína e à guerra.
Foram convocados para ser líderes do povo alemão. Ser líder significa ser um exemplo. Se os líderes forem competentes, todo o povo será competente. Se assim for, consegue-se escalar a montanha. O bem-estar e o mal-estar do povo depende da conduta dos seus líderes. A sua responsabilidade é colossal. E mal estará o povo cujos líderes se recusaram a fazer sacrifícios maiores que os dos homens nas fileiras.” (p. 212)
De resto, a guerra é uma carnificina abominável e abjeta, e uma humanidade que assiste a isto e o suporta durante vários anos não merece consideração. Quem criou essa humanidade tem boas razões para cavar um buraco no chão e lá se enfiar, tanta vergonha deverá sentir, pois esta sua criação é uma enorme ignomínia!” (p. 248)
Texto da autoria de Jorge Navarro

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