“A
juventude é pródiga, vive no paraíso e nem se apercebe quando a
verdadeira felicidade lhe bate à porta.” (p. 26)
“Um
rouxinol entoava toda a felicidade que transbordava do seu pequeno
coração. Fazia-o de modo tão nostálgico, tão doce, tão ditoso,
como se no mundo ainda houvesse coisas como o amor, como a
felicidade.” (p. 153)
A
edição de Schlump
do alemão Hans Herbert Grimm (1896-1950) em língua portuguesa
constitui seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano a cargo
da PIM! Edições que nos presenteia com um volume de luxo, cuja capa
mantém a mesma da edição original, publicada anonimamente em 1928.
Com
o subtítulo de Histórias
e aventuras do desconhecido soldado Emil Schulz, chamado «Schlump»,
narradas pelo próprio,
este romance constitui um grito de protesto sobre o absurdo da
guerra, além de manifestamente ter um discurso anti-militarista e
anti-fascista, razões que estiveram na origem de o livro ter sido
queimado nos autos-de-fé nazis na década de 30.
A
partir de então, Schlump
caiu no
esquecimento até ser reencontrado em 2013 e publicado no ano
seguinte, 85 anos após a primeira edição e um século após o
início da 1ª Guerra Mundial (1914-1918).
São
muitas as informações que nos levam a concluir que este romance tem
muito de autobiográfico atendendo ao facto de Hans Herbert Grimm ter
participado na 1ª Guerra Mundial.
Schlump
divide-se em três
partes: o entusiasmo, a desilusão e a crença na humanidade pelo
amor como superação do horror da guerra.
Com
17 anos, o jovem Schlump toma a decisão patriótica de se alistar
como voluntário na guerra que se acreditava que iria ser breve. É
destacado numa pequena localidade francesa desempenhando funções
semelhantes às de regedor da comunidade, sendo responsável por
controlar a população nos seus afazeres diários. A par do
patriotismo, as funções atribuídas e a descoberta da sexualidade
junto das jovens que vai conhecendo fazem aumentar a auto-estima de
Schlump desenvolvendo a ideia de que a guerra era, afinal de contas,
algo maravilhoso que tinha acontecido na sua vida, tornando-se uma
peça fundamental na gestão da pequena localidade inimiga onde se
ouvia à distância, de vez em quando, o barulho da artilharia.
Com
muito humor, a primeira parte deste romance apresenta-nos a guerra
como algo ligeiro aos olhos de um adolescente a quem os seus
congéneres alemães confiaram no desempenho das suas funções. A
sua capacidade para se desenrascar no intuito de resolver situações
inesperadas é inigualável tanto quanto caricata, daí que a ideia
demonstrada da guerra afastada do campo de batalha é também
absurda.
A
segunda parte do romance tem como pano de fundo alguns dos cenários
de guerra, as trincheiras, e a ideia de uma guerra infernal sem um
fim em concreto à vista. Schlump fora destacado para uma das
trincheiras onde assistiu ao inimaginável, ao horror que nunca
nenhum ser humano deveria presenciar.
Não
são muitas as descrições sobre as mortes, o armamento utilizado,
as condições de sobrevivência, desde a alimentação passando pela
contínua falta de descanso, no entanto são descrições de
episódios muito gráficos, intensos, esmagadores que nos leva a
reflectir sobre as razões da guerra.
Milhares
de vítimas mortais dos dois lados das barricadas, muitas vezes em
luta corpo-a-corpo, jovens que desperdiçaram o tempo e a vida numa
guerra inútil e sem préstimo sem que alguma vez venham a ser
reconhecidos por alguma coisa.
A
fome, o desalento, às precárias condições no dia-a-dia, os amigos
mortos em combate, os episódios com cenas horríveis de plena
carnificina tornam esta guerra duradoura tanto quanto absurda. O
tempo vai passando e a desilusão face à guerra instala-se perante
uma vitória que, afinal não se concretizou.
“Já
ocupavam aquela posição há vinte dias. A cal mordia-lhe as costas,
havia sempre uns pedaços que lhe entravam pela roupa quando
rastejava para entrar no bunker. Tinha feridas nas mãos que não
saravam. Lama desde há vinte dias, só lama, já não havia uma
palavra cordial, só se praguejava.
Como
são felizes os que levam um tiro num braço ou numa perna. Estão em
casa, podem deitar-se na cama e dormir, dormir, dormir.
Schlump
estava terrivelmente desiludido com aquela guerra. E a oportunidade
de realizar um ato heroico teimava em nunca mais chegar.” (p. 142)
Schlump
é ferido numa destas cenas de guerra sangrenta e a desilusão não
poderia ser maior face à guerra interminável sendo que o excerto
que se segue dá-nos uma ideia do horror vivido entre mortos e
feridos dos dois lados do conflito.
“Schlump
jazia entre os mortos, no campo de batalha, inconsciente, em seu
redor sangue e mais sangue, farrapos ensanguentados, membros humanos
e pedaços de equipamento, tudo enegrecido do sangue.” (pp.
150-151)
A
terceira parte do romance coincide com a fase final do conflito, numa
luta desesperada por parte da Alemanha em singrar e levar todo o
esforço, todo o sacrifício do país a uma vitória. Era decisivo
este combate, era o milagre que faltava e que nunca chegou. Era o
desespero que vestia a farpela do entusiasmo que de nada serviu.
“Era
uma febre que a todos atingia. Um entusiasmo diferente do de 1914.
Era o entusiasmo do desespero. Agora, só precisamos de um general,
de uma ideia grandiosa, e estes soldados realizariam um milagre como
o mundo nunca viu. Schlump esteve a ponto de voltar a oferecer-se
como voluntário. Só que as experiências vividas na retaguarda e
quando regressava a casa já lhe haviam roubado a inocência. «Mesmo
que ganhemos», disse para si mesmo, «quem receberá as honras não
será o herói imundo que anda na trincha, mas os dos uniformes a
reluzir; nessa altura eles chegam-se à frente, quando agora, que
chove fogo, fogem.» Não se ofereceu como voluntário.” (p. 219)
No
meio de tanto horror, mortes, feridos, mutilados, destruição e sem
que a compreensão processe todas aquelas imagens e acontecimentos,
não deixa de ser notável como a crença na humanidade e num amanhã
onde se pode ser feliz é possível. Schlump deixa-nos uma mensagem
de amor como a única possibilidade de almejar a paz entre os homens
e as nações em oposição ao absurdo da guerra. Se o homem aprendeu
a matar sem dó nem piedade, sem sentido e sem critério, terá
agora, em período de paz e de reconstrução, de reaprender a amar.
Hans Herbert Grimm deixa
alguns recados às gerações futuras. Apesar de Schlump
não ter alcançado um sucesso retumbante à data da sua edição, o
romance não deixa de reflectir algumas ideias destemidas no final
dos anos 20 quando a Alemanha vivia uma crise económica profunda a
par da humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, daí que o
nacionalismo fervoroso da extrema-direita tenha adquirido expressão
com o Partido Nazi que subiria ao poder no início da década de 30.
Schlump
nunca poderia ter
sido bem acolhido no seio dos ideais nazis sendo destruído nos
auto-de-fé por se apresentar uma obra que põe a ridículo o
fascismo, o militarismo e, em última instância, a guerra.
Os
excertos finais selecionados fazem eco disso mesmo como alertas
deixados por Hans Herbert Grimm para as gerações futuras face à
responsabilidade dos governantes na criação do bem-estar da
sociedade, daí a fragilidade dos estados democráticos que na
sequência de populismos e pequenos nadas os estados podem ser
conduzidos à pobreza, à ruína e à guerra.
“Foram
convocados para ser líderes do povo alemão. Ser líder significa
ser um exemplo. Se os líderes forem competentes, todo o povo será
competente. Se assim for, consegue-se escalar a montanha. O bem-estar
e o mal-estar do povo depende da conduta dos seus líderes. A sua
responsabilidade é colossal. E mal estará o povo cujos líderes se
recusaram a fazer sacrifícios maiores que os dos homens nas
fileiras.” (p. 212)
“De
resto, a guerra é uma carnificina abominável e abjeta, e uma
humanidade que assiste a isto e o suporta durante vários anos não
merece consideração. Quem criou essa humanidade tem boas razões
para cavar um buraco no chão e lá se enfiar, tanta vergonha deverá
sentir, pois esta sua criação é uma enorme ignomínia!” (p. 248)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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