Um livro
extraordinário, de que tirei inúmeras notas, fiz imensas anotações
e sublinhados, assinalei páginas… Foram cinco semanas de viagem, a
acompanhar os quatro meses que Paul Theroux levou desde que partiu em
Setembro de 1973 de Londres e a que regressou no início de Janeiro
de 1974. Não conseguiu cumprir a promessa de que estaria em casa
antes do Natal, apenas tendo conseguido durante a viagem no
Transiberiano apanhar um programa da BBC que passava algumas canções
de Natal!
A edição
da Quetzal abre com um texto de Francisco José Viegas e um belíssimo
prefácio que Paul Theroux decidiu fazer ao seu livro em 2008. O
mundo tinha mudado muito entre 1973 e 2008 e ele sentiu necessidade
de “explicar” o que o levara a escrever aquele livro, o seu
primeiro livro que ele não quis rotular de “livro de viagens”
por desprezar essa designação que associa a turismo de massas, a
interesses comerciais, a luxo e comodidade, tudo aquilo que ele
deixou em casa, quando decidiu aceder a um convite de uma editora
para escrever sobre uma viagem. A ideia de movimento, da verdade da
viagem, de ir sozinho, anónimo e ser autosuficiente agradava-lhe,
ele que já viajara antes, já trabalhara em diferentes países, mas
nunca escrevera sobre a experiência da viagem, de apanhar comboios,
de conhecer passageiros, de ouvir diálogos.
Uma
viagem longa a partir da Europa, entrando na Ásia pela Turquia,
seguindo pelo Irão, Afeganistão e Paquistão até à Índia e
Ceilão, entrando na Birmânia, passando pela Tailândia, Laos,
Malásia, Vietname, Japão, Extremo Oriente Soviético, Sibéria,
Polónia, Holande e de novo Inglaterra. Foram 30 comboios, alguns com
nomes míticos, poucos aviões e barcos, sempre que a ligação de
comboio era impossível. Comboios de todo o tipo, todos diferentes e
com “personalidades” próprias: Expressos, Locais, Correios, de
passageiros, o Expresso de Bombaim que afinal era mais um comboio
local que expresso com as paragens constantes dos passageiros que
accionavam o alarme para assim se apearem e ficarem mais perto de
casa… já sem falar da viagem na carruagem privativa do director
dos Caminhos de Ferro Vietnamitas, ou o Super Expresso “Raio de
Sol” para Quioto, o comboio de passageiros mais rápido do mundo
(pelo menos nessa altura) que fazia os 500 kms entre Tóquio e Quioto
em menos de três horas.
A
escrita de Theroux é tão vívida, que é impossível não sentir
que se viajou com ele, que se conheceram pessoas bizarras, que se
descobriu que cada comboio é uma incógnita, pois pode ou não ter
carruagem-cama, vagão-restaurante, que nos dois primeiros meses o
sol brilhou, que a primeira chuvada foi na Índia e que as monções
trouxeram inundações e o risco de colapso de pontes na Tailândia,
e que foi na Birmânia que teve a primeira sensação de frio que
depois se intensificou drasticamente no Japão onde a neve e a
aproximação da viagem gélida através da Sibéria o obrigaram a
comprar roupa quente para substituir a roupa fresca e puída que
usara até então.
Se teve
de ser vegetariano à força na Índia onde teve os primeiros
desarranjos intestinais, ou se fingiu que comia pardalinhos na
Birmânia, aprendeu que em muitas estações onde paravam havia
vendedores de produtos locais que respondiam à inexistência de
vagões-restaurante em muitos dos comboios. E se isso era impensável
nas estações no Japão, em que a saída de passageiros na estação
e a partida do comboio era uma questão de segundos, noutros comboios
o drama de perder o comboio não se colocava. E aqui não posso
deixar de referir uma personagem bizarra – Duffill – que, na
atrapalhação de ir comprar víveres para a viagem com destino à
Turquia, perdeu o Expresso do Oriente logo em Itália, o que deu
origem ao verbo “duffilar”. Pois em quatro meses de viagem, o
autor só ficou “duffilado” em Moscovo onde ficou retido dois
dias, não lhe tendo sido permitido embarcar no comboio para a
Polónia, por não ter visto de trânsito.
Imaginamos
Paul Theroux com o seu cachimbo, óculos, mapa, livros e blocos de
apontamentos, aonde vai anotando todos os detalhes e impressões de
viagem. Na passagem por Itália estava a ocorrer uma epidemia de
cólera; em Istambul soube da morte de Pablo Neruda no Chile que
acabara de ser tomado de assalto por Pinochet; a imagem omnipresente
de Ataturk parecia que tinha feito congelar a cidade desde 1938, ano
em que morreu; no Irão e em Teerão que lhe deixou uma impressão
muito negativa, deparou-se com duas realidades distintas com mulheres
de saia e blusa e outras totalmente cobertas com véu e com o rosto
tapado; a presença dos americanos ligados à extração do petróleo
na região; o suborno (bakchich)
como
prática corrente para se conseguir qualquer coisa; o Balochistão em
guerra; o Afeganistão e o Paquistão como zonas de conflito; a
péssima impressão deixada por Cabul, ao contrário de Peshawar; os
hippies; a droga. A Índia como um grande país, muito diverso e
muito dividido, as aldeias, as estações de comboio apinhadas onde
os indianos literalmente viviam, o lixo, a degradação, as pessoas
mutiladas que mendigavam, a prostituição infantil. Madrasta, que um
indiano lhe disse que era onde estava “a verdadeira Índia”, foi
onde teve o primeiro susto da viagem com um taxista que lhe colocou o
dilema: praia ou rapariga? A estranheza daqueles a quem dizia querer
ir ao Ceilão, um país marcado pela fome, pobreza, mendicidade e
ociosidade, pois segundo eles no Ceilão “não se passa nada”.
Nessa viagem para o Ceilão (Sri Lanka) teve o comboio todo por sua
conta e em Columbo fez uma conferência sobre literatura
norte-americana, como aliás já tinha feito em Istambul e como faria
em Bombaim, Calcutá, Saigão, Hué e Hokkaido.
A foto
da capa da autoria de Oleh Slobodeniuk não está referenciada quanto
ao local. Quero, no entanto, ver nela a viagem que Paul Theroux fez a
Gokteik no norte da Birmânia. Uma viagem, uma verdadeira ousadia,
cheia de dificuldades e perigos por os comboios serem alvo de
constantes ataques de rebeldes e de ladrões e que, no fim, quando
ele pensava que iria parar à cadeia, o aconselharam a não repetir.
Birmânia, Laos, Tailândia, Malásia, Singapura, Vietname na época
das monções, foram os destinos que marcaram a viagem a caminhar
para o fim. No meio de paisagens de uma beleza indescritível, são
notórias a indústria do sexo e o caos deixado nos despojos da
aventura de guerra dos americanos na península da Indochina:
acampamentos acupados por refugiados, hospitais pilhados, crianças
louras que falam vietnamita, instabilidade, vulnerabilidade e
insegurança. Numa nota de rodapé, o autor refere que em 1975,
grande parte das cidades por onde passou dois anos antes, tinham ido
pelos ares com muitas centenas de mortes.
No Japão
para onde voa, encontra uma sociedade totalmente diferente. Um “povo
programado”, disciplinado, mergulhado na parafernália electrónica,
onde tudo é veloz e eficiente e angustiante; estranhamente
consumindo entretenimentos de erotismo violento em que o sadismo está
banalizado em espectáculos para turistas, em bandas desenhadas, em
filmes. É exactamente em Hokkaido – “A Terra do Grande Céu” –
que o fascina pela beleza natural e que fotografa à exaustão, que
Paul Theroux tomou a decisão de escrever este livro. Sente-se que o
autor começa a sentir os efeitos do cansaço, o desejo de que a
viagem chegue ao fim. Olha para trás, para as semanas que decorreram
e para as terras e pessoas que conheceu e sente a necessidade de
fazer sínteses, de fazer avaliações. Decide que o título do seu
livro será o nome de uma rua na Índia “O
Grande Bazar Ferroviário”.
Tal como
a viagem de avião de Da Nang para Saigão tinha sido assustadora, a
viagem de barco no Mar do Japão que faz a ligação Japão-Rússia
não foi menos. A ligação de Khabarovsk – recorda Tchékhov que
por lá passou quando em 1890 esteve durante alguns meses em Sacalina
– até Moscovo pelo Transiberiano (10 mil kms) é a mais longa
viagem de comboio do mundo e vai ser a parte mais penosa da viagem.
Não só pela distância, mas pelo cansaço, pela uniformidade da
paisagem, pelo frio (34 graus negativos), pela solidão, pelas
saudades de casa, pelo sentimento de culpa, pelos pesadelos em que a
mulher e o filho aparecem e, embora tente criar uma disciplina que o
ajude a sobreviver, a verdade é que o ambiente dentro do comboio não
permite. Depois de passarem o Extremo Oriente Soviético seguindo ao
longo da Mongólia em que as bétulas e os cedros são a paisagem
para além da imensidão da neve, a Sibéria só começa depois de
Irkutsk e depois temos a tundra. Perde a noção do tempo, “o
desespero faz-me fome” “raramente sabia onde estávamos, nunca
sabia as horas correctas e detestava cada vez mais aquelas geleiras
que tinha de atravessar para ir para o vagão-restaurante.” e
a urgência de chegar é tudo o que tem. A bebida é a companhia dos
russos e ele é o único ocidental no comboio, pois lá bem atrás os
seus companheiros tinham apanhado o avião para Moscovo, fazendo em 9
horas a viagem que ele precisava de fazer em vários longos dias.
Falta-me
falar dos passageiros e dos livros ou das referências literárias
que a viagem lhe evocou. Duffill que partira de Londres com ele e que
se tinha perdido a meio do caminho antes de chegar a Istambul e
Molesworth, companheiros na viagem no Expresso do Oriente; Sadik o
turco a caminho da Austrália, “foi
boa companhia num troço maçador da viagem”;
um indiano que vivera toda a vida em Inglaterra e que se queixava das
atitudes racistas dos ingleses, tal como Radia que trabalhara 30 anos
na SHELL apelidandos os ingleses de exclusivistas e dominadores; um
alemão que fugira de um centro de reabilitação a caminho da Índia
e que se alimentava de ópio e água; Vishnu um indiano de Simla que
vaticinou que um dia voltariam a encontrar-se no Reino Unido ou nos
EUA, o tal que lhe indicara que em Madrasta encontraria ele a
verdadeira Índia; em Jaipur, o sr. Goipal, contacto da embaixada e
que em princípio seria um facilitador ao nível da comunicação,
revelou-se um verdadeiro desastre; um monge budista americano pouco
dado a conversas; um jovem inglês aparentemente a fugir da namorada
indiana; o sr. Bernard um birmanês que havia sido chefe de cozinha o
que lhe permitira conhecer pessoas muito importantes e participar em
eventos especiais, convida-o a pernoitar na sua casa onde, num quarto
com lareira é brindado com uma refeição principesca como há muito
não comia; e ainda dois altos funcionários do Bangladesh
responsáveis por planeamento familiar nas áreas rurais e que vinham
de uma conferência sobre esse tema.
Da lista
de livros que Theroux escolheu e levou e sobre os quais foi
escrevendo à medida da sua narrativa, lembro “A
Pequena Dorrit”
de Charles Dickens, autor que ele evoca em Calcutá, por esta cidade
do norte da Índia lhe lembrar a Londres de Dickens. “Ariadne”
e outros contos de Tchékhov, a pensar em Sacalina onde se localizava
a maior penitenciária russa*. “Autobiografia
de um Iogue”
de Paramahansa
Yogananda, Na passagem por Lahore recorda Kipling que aí viveu e
trabalhou, Bombaim a que estão ligados Mark Twain que lhe dedica um
capítulo de “Following
the Equator”
e V. S. Naipaul que relata em “An
Area of Darkness”uma
situação em que entra em pânico numa estação ferroviária de
Bombaim. “Exilados”
de James Joyce, poemas de Browning ou “O
Canto Estreito”
de Somerset Maugham. “Silêncio”
de Shusaku Endo, ou “Contos
Japoneses de Mistério e Imaginação"
de Hirai Taro são outras obras que fui identificando ao longo da
leitura de “O
Grande Bazar Ferroviário”.
E se as
minhas notas já vão longas, revelando alguma incapacidade de
síntese, a verdade é que me foi difícil não colocar aqui algumas
transcrições. Concluo dizendo que este não é um roteiro
turístico, mas tão só uma viagem solitária feita por Paul
Theroux, longe das comodidades do turismo de massas. Um registo na
primeira pessoa de alguém que possibilita quem o lê a viajar com
ele e a deitar abaixo uma visão etnocêntrica da realidade. O mundo
é muito mais do que o lugar onde nascemos e vivemos.
Foi
muito bom viajar com este autor que ainda não conhecia. E penso que
comecei da melhor maneira.
*Em
2018, a Barraca levou à cena no TeatroCinearte a peça “A
Volta o Mar, no Meio o Inferno”,
sobre a experiência vivida por Tchékov em Sacalina, (21 de Abril a
8 de Dezembro de 1890), onde faz o “recenseamento da população
local e um extenso levantamento sociogeográfico da região.” Nota
da publicação editada pelo TeatroCinearte
23
de Julho de 2019
Almerinda
Bento
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