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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

A Escolha do Jorge: “Cartas a Milena”


“Sim, a tortura, para mim, é extremamente importante, eu não me ocupo com mais nada senão com ser torturado e torturar.” 
(p. 206)

Amar Kafka… Sim, creio que depois de ter lido algumas das obras de Kafka, e de ter mergulhado nestas cartas, é o pensamento que me vem à mente. Um amor literário, por palavras, ideias tendo por base sentimentos e vivências do autor, parece-me ser esse o pensamento a transmitir.

Contextualizando, esta obra corresponde à compilação das cartas de Franz Kafka (1883-1924) enviadas a Milena Jasenská (1896-1944), a sua tradutora do alemão para a língua checa, que residia em Viena, ao longo de 1920, numa primeira fase, quando o escritor se encontrava a recuperar num sanatório em Merano, na Itália, e mais tarde, em Praga.

É notório o tom mais formal nas primeiras cartas na forma como Kafka se dirige a Milena, iniciando as mesmas com “Cara senhora Milena”, mas percebendo a abertura e as dificuldades económicas e até problemas conjugais da sua interlocutora, Kafka rapidamente percebeu haver espaço para o coração de ambos ainda que se tratasse de uma relação condenada à nascença por várias razões. Neste sentido, durante praticamente um ano desenvolveu-se uma relação amorosa, epistolar, platónica em certa medida, entre Kafka e Milena, entrando ambos numa roda viva de cartas e telegramas a circular, chegando Kafka a escrever duas e três cartas por dia, tal era a inquietação do autor à data.

Todos conhecemos o universo de Kafka a partir das obras de Kafka, mas lendo estas cartas, num tom mais intimista, percebemos as ideias que mais caracterizam a sua escrita, como o medo, a sujidade, o sofrimento, a tortura, a inquietação, a burocracia trazida pela modernidade, não esquecendo a culpa, a culpa de existir.

Kafka afirma “Sim, a tortura, para mim, é extremamente importante, eu não me ocupo com mais nada senão com ser torturado e torturar.” (p. 206) Ao longo destas cartas, compreendemos que é o próprio Kafka quem transforma a sua vida num inferno. Kafka é um herdeiro exemplar da cultura judaica e lemos inúmeras vezes a sua fragilidade física, mas também a sua incapacidade de compreender o mundo. Kafka quase pede perdão por existir e, como tal, é-lhe imputada uma expiação, mas carece de força para tal. Há uma passagem em que de certa forma podemos comparar Kafka a Atlas que carrega o peso do mundo e também a Jesus que expia os pecados da humanidade. “(…) Não posso trazer o mundo aos ombros, aos ombros mal suporto o meu sobretudo.” (p. 208)

Esta ideia em torturar e ser torturado ‘ad eternum’ acompanha, de um modo geral, estas cartas. Um dos exemplos, talvez o mais marcante, é a dificuldade em marcar a visita de Kafka a Milena, em Viena, durante quatro dias. Chega a ser cómico tanto quanto desesperante determinar o dia, o transporte, a ligação, o horário, o encontro, e quando aparentemente combinado, eis que surge a indecisão em relação à partida para Viena. O medo que rói e mina por dentro a consciência que se vê culpada e que reflecte uma culpa milenar está sempre presente nas palavras de Kafka.

Se por um lado ficamos a conhecer o lado mais doce e terno de Kafka, e também sedutor, percebemos também da sua necessidade de amar e ser amado urgente e incessantemente, não esquecendo o facto de Kafka ter rompido dois noivados com outras duas jovens antes de ter conhecido Milena. Kafka surpreende-nos com uma declaração de amor a Milena ao ponto de a mesma ter sido sublinhada pelo próprio, como forma de enfatizar as palavras e sentimentos. E sim, como leitores, talvez não esperássemos conhecer este lado mais terno de Kafka, o que lhe confere uma dimensão mais humana em contraponto com a natureza das suas obras. “(…) E eu amo-te, ó de compreensão lenta, como o mar ama um seixo minúsculo que tem no fundo, é exactamente assim que o meu amar-te te inunda (…).” (p. 149) “Já dantes, antes de dizeres que às vezes, ao escrever, pensas em mim, eu sentia que os teus artigos tinham relação comigo, quer dizer, apertava-os contra mim, agora que o disseste expressamente, sinto-me quase mais receoso nesse aspecto e quando, por exemplo, ouço falar, no artigo, de uma lebre na neve, quase me vejo a mim próprio a correr.” (p. 166)

É ainda no sanatório, em Merano, na fase inicial desta relação epistolar, quando Kafka ainda se dirigia a Milena na terceira pessoa, que o próprio se refere ao medo como uma característica comum a ambos. O medo funcionou como o elemento catalisador desta relação face à necessidade de encontrar alguém semelhante e que tão bem compreendia o outro. “Somos tão tímidos e ansiosos que quase todas as cartas são diferentes, quase todas se assustam com a anterior e, mais ainda, com a carta de resposta. A Milena não é assim por natureza, é fácil de ver, e eu, talvez mesmo eu não o seja por natureza, mas já quase se transformou em natureza, só passa com o desespero e, no máximo, também com a ira e, não esqueçamos: com o medo.” (p. 45) Nesse mesmo dia, a 10 de Junho de 1920, numa segunda carta dirigida a Milena, Kafka dirige-se-lhe na segunda pessoa, passando a ser regra doravante.

Sensivelmente a partir desta data, Kafka entra numa roda viva de ansiedade em registo quase desesperante com o envio de cartas a Milena. Percebemos da sua inquietação no que respeita ao envio e receção das cartas e telegramas ao longo de vários meses devido às múltiplas referências sobre o serviço de correios. Esta ansiedade é uma das características sobejamente conhecida das obras do autor, mas que, também, na vida privada, se torna superlativa, a ver pelo seguinte excerto: “Estive todo o dia ocupado com as tuas cartas, em sofrimento, em amor, em cuidados e num medo completamente indefinido, cuja indefinição consiste sobretudo em ser desmedidamente superior às minhas forças.” (p. 168)

Este medo, sofrimento, esta incapacidade de compreender o mundo, de certa forma a alienação com que Kafka se vê a braços reflectem a corrente expressionista que, a partir da pintura, também veio a ter eco na literatura, como é visível nas obras do autor. As suas obras fazem, contudo, a fusão entre o expressionismo e o surrealismo, corrente que surge nos anos 20, mas que, atendendo à natureza das obras de Kafka, podemos afirmar que o autor se inscreve como um dos precursores desse movimento.

O medo, o medo, sempre o medo e novamente o medo é a palavra-chave destas cartas dirigidas a Milena. À medida que Kafka se torna obsessivo nesta relação epistolar com Milena, ficamos com a sensação que, em certos momentos, o autor sente a necessidade de aludir ao peso da herança judaica e tudo aquilo que ela representa na contemporaneidade e na forma como os judeus são vistos perante os outros. Neste sentido, à medida que Kafka ganha consciência do amor que nutre por Milena, aumenta também a ideia da sujidade, uma sujidade ancestral, e à medida que esse amor se desenvolve, mais difícil se concretizará a ideia de salvação, daí que a perda seja iminente, inevitável. “Sou sujo, Milena, infinitamente sujo, por isso faço uma tal gritaria sobre o asseio. Ninguém canta de maneira mais pura do que os que estão no mais fundo dos infernos; o que julgamos ser o canto dos anjos é o canto deles.” (p. 167) “O que é terrível é tu fazeres-me tomar muito mais consciência da minha sujidade e – sobretudo – isso tornar-me a salvação tanto mais difícil, não tanto mais impossível (é impossível de qualquer maneira, mas aqui o impossível intensifica-se).” (p. 195)

Esta consciência de impossibilidade em concretizar o amor para lá da relação epistolar vai gerar o ressentimento e, com ele, o fim desta relação que, na verdade, nunca existiu. Este amor em tormentas que despertou todos os medos e fantasmas de Kafka conduziu também à inevitabilidade da perda. No início de Outubro de 1920, Kafka tem um laivo de consciência pondo fim a toda esta situação para bem de ambos, tornando-se parca a correspondência entre os dois a partir de então. O medo em concretizar o amor é substituído pelo amor face ao indeterminado. “Milena, porque é que falas na tua carta do futuro em comum, que nunca vai existir, ou é por isso que falas dele? Já quando uma vez à noite, em Viena, falámos por alto disso, tive a sensação de que estávamos à procura de alguém que conhecíamos muito bem e de quem sentíamos muito a falta e a quem, portanto, chamávamos com os nomes mais belos, mas não veio a resposta; como é que ele podia responder, se não estava ali, nem em nenhum sítio ao nosso alcance.” (p. 197)

À medida que as cartas vão sendo redigidas, somos levados a crer na inevitabilidade do fim da relação epistolar entre Kafka e Milena dado que, várias vezes, Kafka apela a Milena para que não lhe volte a escrever. Por vezes o apelo é sério, mas também acaba por se tornar contraditório, ora não se tratasse de Kafka que, não estando bem com a situação, também não iria ficar melhor pondo cobro à relação, tornando-se assim numa situação caricata, cómica, mas tortuosa, para si, para Milena, mas também para o leitor. Creio que é este misto de inquietação e loucura, mas também imprevisibilidade que está na origem daquilo que comummente se passou a designar por kakfiano. “Ontem, aconselhei-te a não me escreveres todos os dias, continua a ser essa a minha opinião hoje, e seria muito bom para nós ambos e aconselho-to hoje outra vez e ainda com mais insistência – mas, por favor, Milena, não faças como eu digo e escreve-me todos os dias, pode ser só uma carta muito curta, mais curta do que as cartas de hoje, só duas linhas, só uma, só uma palavra, mas a falta desta palavra provocar-me-ia sofrimentos atrozes.” (pp. 104-105)

São muitos os elogios que Milena Jesenská (Pollak, nome de casada) tece a Frank (nome como habitualmente se dirigia a Franz Kafka) nas cinco cartas dirigidas a Max Brod, aqui também compiladas, entre Julho de 1920 e Julho de 1924. Durante os meses em que durou aquela relação epistolar, num jogo de gato e rato, a ver pelas cartas de Kafka, Milena fez um retrato fiel do seu correspondente, o que nos permite construir a ideia de um Kafka de carne e osso para lá do Kafka escritor, ainda que o primeiro seja o motor do segundo. “É absolutamente incapaz de mentir, tal como é incapaz de se embebedar. Não tem o mínimo refúgio, não tem abrigo. Por isso está exposto a tudo aquilo de que nós estamos protegidos. É como uma pessoa nua no meio de gente vestida. (…) Os livros dele são espantosos. Ele próprio é muito mais espantoso.” (p. 233) O que eu acho é que todos nós, o mundo inteiro e todos os seres humanos, estamos doentes e ele é o único são, que compreende as coisas correctamente e as sente correctamente, é o único ser puro.” (p. 236)

No obituário de Kafka, publicado no ‘Národní Listy’ a 6 de Junho de 1924, dois dias após o falecimento do escritor, Milena Pollak escreve: "Era tímido, ansioso, doce e bom, mas os livros que escreveu são cruéis e dolorosos. Via o mundo cheio de demónios invisíveis, que fazem o ser humano desprotegido em pedaços e o destroem. Era demasiado lúcido, demasiado sábio, para poder viver, demasiado fraco para lutar, fraco como são as pessoas nobres e belas, que são incapazes de travar combate com o seu receio da incompreensão, da falta de bondade, da mentira intelectual, já que conhecem antecipadamente a sua impotência e envergonham o vencedor ao sucumbir. Ele conhecia as pessoas, como apenas alguém com grande sensibilidade nervosa pode conhecer, alguém que está só e reconhece o outro de modo quase profético por um único brilho momentâneo do olhar. Conhecia o mundo de uma forma incomum e profunda, ele próprio era um mundo incomum e profundo. Escreveu os livros mais significativos da literatura alemã recente (…). (…) Todos os seus livros descrevem o horror de uma incompreensão misteriosa, de uma culpa inocente entre os seres humanos. Ele era um artista e um homem com uma consciência de tal forma sensível que conseguia ouvir mesmo lá onde outros, surdos, se julgavam em segurança.” (pp. 240-241)

Milena Jesenská foi presa pela Gestapo, em 1939, tendo sido deportada para o campo de concentração de Ravensbrück onde viria a morrer em 1944.

Texto da autoria de Jorge Navarro

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