“Também
é possível como pugilista que sejas mais inteligente e hábil, mas
venceste-o, meu querido Campeão, porque a tua alma está corrupta.
Era mesmo necessário bater-lhe no coração, quando sabes que com
isso podias tê-lo matado? Porque é que utilizas esse golpe? Para
que é que ele serve no boxe? Isso é que é desporto?”
(p. 69)
“Abóboras
em flor” é a obra mais representativa do escritor sérvio
Dragoslav Mihailović (n. 1930), como também a mais importante da
literatura sérvia contemporânea. Romancista, contista e ensaísta,
Dragoslav Mihailović recebeu vários prémios literários,
nomeadamente o Prémio Ivo
Andrić, além de ter sido eleito membro da Academia de Ciências e
Artes da Sérvia.
Este
pequeno romance conta-nos a história de Ljuba Sretenović, um sérvio
residente na Suécia com a sua esposa Inge e o filho Arne. A sua
história remonta ao período em que o Marechal Tito media forças
com a então URSS, nos anos 50 e 60, em que o governante tentava a
todo o custo eliminar as diferenças e movimentos separatistas das
seis nações que constituíam a Jugoslávia. Mantendo uma certa
distância e autonomia face à URSS, a Jugoslávia constituía um
estado comunista isolado no contexto europeu, tanto na relação com
a URSS e “Cortina de Ferro” como com os demais países ocidentais
onde vigorava a democracia.
Percebemos
através do relato de Ljuba Sretenović que a falta de expectativas
face ao futuro tendo em consideração a asfixia política geradora
de uma liberdade agrilhoada, remetia muitos jovens para a prática do
pugilismo como forma de evitarem o recrutamento militar.
A
prática do pugilismo por parte de muitos jovens foi a forma de
brilharem entre os seus pares e, enquanto jovens, terem o
reconhecimento das raparigas, assim como de outras pessoas nas
pequenas comunidades. Aqueles que chegavam às competições chegavam
mesmo a ser estrelas reconhecidas nas várias regiões que
constituíam a Jugoslávia, sendo esses acontecimentos e os premiados
registados na imprensa de então.
A
prática deste desporto a par da ausência de perspectivas face ao
futuro conduzia a que se formassem pequenos bandos de jovens que
decidiam bater em inocentes apenas porque assim o determinavam, sem
nenhuma razão em particular, quase como uma espécie de necessidade
de medir forças, havendo mesmo grupos rivais protegidos pelos seus
líderes.
Percebemos
pelo relato de Ljuba Sretenović que a vida não era fácil naqueles
anos. Ainda que controlada em certa medida as diferenças entre as
várias nacionalidades que formavam a Jugoslávia, é-nos dado um
quadro de parceria e de espírito de entreajuda entre as várias
comunidades, na medida em que tudo era regido sob a ideia de um único
país.
São
inúmeros os relatos de violência descritos por Ljuba Sretenović e,
ao longo da narrativa, somos levados a reflectir sobre o conceito de
justiça. Ljuba Sretenović assume os seus erros e o seu crime
capital, mostrando-se sempre disposto a pagar por ele se for caso
disso, mas é o princípio de justiça que nos leva em certa medida a
ilibar Ljuba face a crimes maiores e de honra que trouxeram perdas
incalculáveis.
“Abóboras
em flor” retrata várias situações de violência em relação às
mulheres de uma forma sistemática e de uma crueldade atroz. Foi
exactamente o que aconteceu à irmã de Ljuba que deixou toda a
família vulnerável, principalmente a mãe com uma depressão
profunda e o pai a contar os dias para deixar este mundo. “Mas
todas as noites é como se estivesse a ser estrangulado. E sinto que
o que está para vir é aquilo que todos devíamos estar sempre à
espera.” (p. 72) A dada altura, Ljuba apercebe-se que está só no
mundo já que o seu irmão Vlada é a única pessoa viva e até ele
se encontra num campo de correcção por ser considerado um inimigo
do Estado. “«Não
é cadafalso nenhum, Campeão. Nós não somos capitalistas. Trata-se
de trabalho de correcção; vamos reeducá-lo e, quando estiver
melhor, mandamo-lo cá para fora.»” (p. 37)
A
ida de Ljuba
Sretenović
para a Suécia foi casual ainda que por uma questão de sobrevivência
e de medo. O facto de viver num país que reconhece a liberdade dos
seus cidadãos, Ljuba
trabalha numa fábrica tal como no seu país natal, é sindicalista,
algo inimaginável na Jugoslávia, e é treinador de uma equipa de
boxe local. A par de tudo isto, Ljuba dá apoio aos jugoslavos que,
como ele, procuram na Suécia um futuro melhor. “Há mais ou menos
seis anos, eu era o único jugoslavo em Östersund. Agora somos quase
seiscentos. Quando começaram a aparecer, quase não acreditava. E,
agora, falamos um pouco à nossa maneira, cantamos um pouco à nossa
maneira, choramos um pouco à nossa maneira, e depois cada um vai
para o seu lado.” (pp. 9-10)
Mesmo
vivendo em liberdade e tendo as condições que nunca teria na
Jugoslávia, Ljuba morre de saudades da sua língua materna, assim
como do seu país, sentindo uma necessidade imensa de fazer a viagem
desde o norte da Europa até aos Balcãs, nem que seja só pelo
prazer de entrar no país por um dia e depois voltar para trás.
“Abóboras
em flor” de Dragoslav Mihailović é um hino à saudade, à
melancolia, mas também um enorme contributo à literatura na sua
essência. O leitor lê as primeiras páginas e fica completamente
agarrado à história e à simplicidade da escrita, sendo um daqueles
exemplos de que um pequeno livro constitui um livro imenso que nos
acompanhará por mais algum tempo.
“Abóboras
em flor” é um pequeno livro onde reina o ódio, a raiva e o desejo
de vingança, mas que acabam suplantados pelo amor, pela tolerância
e por um forte sentimento de felicidade. E a justiça, sim, a
justiça… O que é a justiça, afinal de contas?
Excerto:
“Não,
não vou voltar. Saí de lá há doze anos, e aqui, em Östersund, já
estou há oito. Tenho família. Está a ver aquele rapaz russinho
ali? Pois parece, e é mesmo sueco. A minha mulher teve-o em
solteira, antes de mim; aqui os costumes são outros. Dei-lhe o nome;
o pai, de qualquer maneira, nunca chegou a conhecer. Agora chama-se
Arne Sretenović.
Custou-lhe muito a aprender a dizer o próprio nome. Estou a
ensiná-lo a falar sérvio. E, nem de propósito, aprende mesmo bem,
é mesmo esperto. Já o mandei, quatro vezes, para o meu irmão
Vlada, em Belgrado, a ele e à mãe. Levam sempre dinheiro, claro. O
meu irmão manda-os com os seus, tem um casalinho, para a praia. De
que outra maneira podia explicar porque os mando para lá? Os
coitados dos suecos, pensam que toda a Jugoslávia é uma grande
praia. Não conseguem imaginar que há quem vá à Jugoslávia e não
vá à praia. E mesmo quando eu vou, dizem: «Foi para as praias
dele. Não pode viver sem elas.»
(…)
O meu miúdo adora-me; e tenho de admitir que eu também gosto dele.
Uma vez, estava a passar na rua e vi-o com uns amigos, a gabar-se:
«Lá, na Jugoslávia, o meu velho era um campeão. Os jornais
falavam dele.» Mas eu nunca fui campeão da Jugoslávia. Fui campeão
da Sérvia, dois anos de peso meio-médio e médio ligeiro e médio.
Também fui campeão de peso médio nas Forças Armadas, quando
estava na tropa. E o Arne diz à mãe: «Quando no Verão passado
fomos à nossa Jugoslávia…»” (pp. 5-6)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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