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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

A Escolha do Jorge: "Abóboras em Flor"



“Também é possível como pugilista que sejas mais inteligente e hábil, mas venceste-o, meu querido Campeão, porque a tua alma está corrupta. Era mesmo necessário bater-lhe no coração, quando sabes que com isso podias tê-lo matado? Porque é que utilizas esse golpe? Para que é que ele serve no boxe? Isso é que é desporto?” 
(p. 69)
“Abóboras em flor” é a obra mais representativa do escritor sérvio Dragoslav Mihailović (n. 1930), como também a mais importante da literatura sérvia contemporânea. Romancista, contista e ensaísta, Dragoslav Mihailović recebeu vários prémios literários, nomeadamente o Prémio Ivo Andrić, além de ter sido eleito membro da Academia de Ciências e Artes da Sérvia.
Este pequeno romance conta-nos a história de Ljuba Sretenović, um sérvio residente na Suécia com a sua esposa Inge e o filho Arne. A sua história remonta ao período em que o Marechal Tito media forças com a então URSS, nos anos 50 e 60, em que o governante tentava a todo o custo eliminar as diferenças e movimentos separatistas das seis nações que constituíam a Jugoslávia. Mantendo uma certa distância e autonomia face à URSS, a Jugoslávia constituía um estado comunista isolado no contexto europeu, tanto na relação com a URSS e “Cortina de Ferro” como com os demais países ocidentais onde vigorava a democracia.
Percebemos através do relato de Ljuba Sretenović que a falta de expectativas face ao futuro tendo em consideração a asfixia política geradora de uma liberdade agrilhoada, remetia muitos jovens para a prática do pugilismo como forma de evitarem o recrutamento militar.
A prática do pugilismo por parte de muitos jovens foi a forma de brilharem entre os seus pares e, enquanto jovens, terem o reconhecimento das raparigas, assim como de outras pessoas nas pequenas comunidades. Aqueles que chegavam às competições chegavam mesmo a ser estrelas reconhecidas nas várias regiões que constituíam a Jugoslávia, sendo esses acontecimentos e os premiados registados na imprensa de então.

A prática deste desporto a par da ausência de perspectivas face ao futuro conduzia a que se formassem pequenos bandos de jovens que decidiam bater em inocentes apenas porque assim o determinavam, sem nenhuma razão em particular, quase como uma espécie de necessidade de medir forças, havendo mesmo grupos rivais protegidos pelos seus líderes.
Percebemos pelo relato de Ljuba Sretenović que a vida não era fácil naqueles anos. Ainda que controlada em certa medida as diferenças entre as várias nacionalidades que formavam a Jugoslávia, é-nos dado um quadro de parceria e de espírito de entreajuda entre as várias comunidades, na medida em que tudo era regido sob a ideia de um único país.
São inúmeros os relatos de violência descritos por Ljuba Sretenović e, ao longo da narrativa, somos levados a reflectir sobre o conceito de justiça. Ljuba Sretenović assume os seus erros e o seu crime capital, mostrando-se sempre disposto a pagar por ele se for caso disso, mas é o princípio de justiça que nos leva em certa medida a ilibar Ljuba face a crimes maiores e de honra que trouxeram perdas incalculáveis.
“Abóboras em flor” retrata várias situações de violência em relação às mulheres de uma forma sistemática e de uma crueldade atroz. Foi exactamente o que aconteceu à irmã de Ljuba que deixou toda a família vulnerável, principalmente a mãe com uma depressão profunda e o pai a contar os dias para deixar este mundo. “Mas todas as noites é como se estivesse a ser estrangulado. E sinto que o que está para vir é aquilo que todos devíamos estar sempre à espera.” (p. 72) A dada altura, Ljuba apercebe-se que está só no mundo já que o seu irmão Vlada é a única pessoa viva e até ele se encontra num campo de correcção por ser considerado um inimigo do Estado. “«Não é cadafalso nenhum, Campeão. Nós não somos capitalistas. Trata-se de trabalho de correcção; vamos reeducá-lo e, quando estiver melhor, mandamo-lo cá para fora.»” (p. 37)
A ida de Ljuba Sretenović para a Suécia foi casual ainda que por uma questão de sobrevivência e de medo. O facto de viver num país que reconhece a liberdade dos seus cidadãos, Ljuba trabalha numa fábrica tal como no seu país natal, é sindicalista, algo inimaginável na Jugoslávia, e é treinador de uma equipa de boxe local. A par de tudo isto, Ljuba dá apoio aos jugoslavos que, como ele, procuram na Suécia um futuro melhor. “Há mais ou menos seis anos, eu era o único jugoslavo em Östersund. Agora somos quase seiscentos. Quando começaram a aparecer, quase não acreditava. E, agora, falamos um pouco à nossa maneira, cantamos um pouco à nossa maneira, choramos um pouco à nossa maneira, e depois cada um vai para o seu lado.” (pp. 9-10)
Mesmo vivendo em liberdade e tendo as condições que nunca teria na Jugoslávia, Ljuba morre de saudades da sua língua materna, assim como do seu país, sentindo uma necessidade imensa de fazer a viagem desde o norte da Europa até aos Balcãs, nem que seja só pelo prazer de entrar no país por um dia e depois voltar para trás.
“Abóboras em flor” de Dragoslav Mihailović é um hino à saudade, à melancolia, mas também um enorme contributo à literatura na sua essência. O leitor lê as primeiras páginas e fica completamente agarrado à história e à simplicidade da escrita, sendo um daqueles exemplos de que um pequeno livro constitui um livro imenso que nos acompanhará por mais algum tempo.
“Abóboras em flor” é um pequeno livro onde reina o ódio, a raiva e o desejo de vingança, mas que acabam suplantados pelo amor, pela tolerância e por um forte sentimento de felicidade. E a justiça, sim, a justiça… O que é a justiça, afinal de contas?


Excerto:
“Não, não vou voltar. Saí de lá há doze anos, e aqui, em Östersund, já estou há oito. Tenho família. Está a ver aquele rapaz russinho ali? Pois parece, e é mesmo sueco. A minha mulher teve-o em solteira, antes de mim; aqui os costumes são outros. Dei-lhe o nome; o pai, de qualquer maneira, nunca chegou a conhecer. Agora chama-se Arne Sretenović. Custou-lhe muito a aprender a dizer o próprio nome. Estou a ensiná-lo a falar sérvio. E, nem de propósito, aprende mesmo bem, é mesmo esperto. Já o mandei, quatro vezes, para o meu irmão Vlada, em Belgrado, a ele e à mãe. Levam sempre dinheiro, claro. O meu irmão manda-os com os seus, tem um casalinho, para a praia. De que outra maneira podia explicar porque os mando para lá? Os coitados dos suecos, pensam que toda a Jugoslávia é uma grande praia. Não conseguem imaginar que há quem vá à Jugoslávia e não vá à praia. E mesmo quando eu vou, dizem: «Foi para as praias dele. Não pode viver sem elas.»
(…) O meu miúdo adora-me; e tenho de admitir que eu também gosto dele. Uma vez, estava a passar na rua e vi-o com uns amigos, a gabar-se: «Lá, na Jugoslávia, o meu velho era um campeão. Os jornais falavam dele.» Mas eu nunca fui campeão da Jugoslávia. Fui campeão da Sérvia, dois anos de peso meio-médio e médio ligeiro e médio. Também fui campeão de peso médio nas Forças Armadas, quando estava na tropa. E o Arne diz à mãe: «Quando no Verão passado fomos à nossa Jugoslávia…»” (pp. 5-6)
Texto da autoria de Jorge Navarro

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