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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A escolha do Jorge: Norma


Sofi Oksanen (n. 1977) é uma das jovens escritoras finlandesas, cujo nome tem tido bastante projecção na Europa desde a publicação do seu primeiro romance “A Purga” (2008) que lhe valeu vários prémios literários, além de ter sido adaptado ao cinema, em 2012, e também ao teatro em vários países, nomeadamente em Portugal.

“A Purga” é daqueles livros que dificilmente se esquecem, não só pela história dramática, avassaladora e de sobrevivência, numa época em que a Estónia era ainda uma das repúblicas da então URSS. E tratando-se de ficção histórica, Sofi Oksanen, com a sua escrita criativa empurra o leitor para o centro de uma narrativa que se torna empolgante e quase policial, num jogo de gato e rato, em que o mais forte não olha a meios para esmagar o mais fraco.

Rapidamente percebemos que as mulheres desempenham um papel importante na obra de Sofi Oksanen. As suas fragilidades, os medos, a intimidade intrínseca que as une numa causa comum para lutar por direitos que, na verdade, deveriam ser tidos como adquiridos.

Quanto a “Norma” (2015), é o mais recente romance da escritora finlandesa, publicado recentemente pela Alfaguara, à semelhança do que já tinha acontecido com “A Purga” e “Quando as Pombas
desaparecem”. “Norma” apresenta-nos uma história contada a partir dos dias de hoje, em Helsínquia, a capital da Finlândia, começando precisamente com o funeral de Anita, a mãe de Norma. Mãe e filha estiveram sempre ligadas durante toda a vida na sequência de uma particularidade biológica de Norma que foi sempre escondida pela mãe para que não se expusesse e não fosse vítima de bullying por parte dos colegas, mas também por perceber, desde cedo, que consequências poderiam advir para Norma face a uma eventual descoberta ou exposição dessa mesma particularidade do seu corpo.

Ao contrário de “A Purga” que segue uma linha no âmbito da ficção histórica, “Norma” reflecte, em certa medida, nalgumas das tensões que sobreviveram ao desmantelamento da URSS, na relação com os países que então se tornaram independentes. Não diria que se tratasse de uma espécie de continuação de guerra fria, mas percebe-se quais foram os países que se conseguiram libertar, uns mais, outros menos, dos tentáculos russos. Percebe-se quais alguns dos países que após a independência da URSS conseguiram legislar e elaborar uma constituição que protege os cidadãos e também aqueles países cujas leis ou a inexistência das mesmas sobre determinados assuntos deixam o espaço suficiente para a movimentação de máfias com ramificações muito específicas e totalmente estranhas, pelo menos para cidadãos europeus que vivem na parte mais ocidental do continente.

No dia do funeral de Anita, Norma é abordada por pessoas que lhe são estranhas e rapidamente é levada a crer que, afinal de contas, a proximidade e intimidade que tinha com a sua mãe estava apenas embelezada. Muito provavelmente Anita agiu dessa forma para proteger a filha, mas o certo é que Norma vê-se enredada numa teia com ramificações que nem ela tinha uma verdadeira consciência, tal como das pessoas envolvidas. O certo é que Norma “herdou” todo um conjunto de problemas da sua mãe pelo facto desta estar envolvida numa rede que, com a evolução da narrativa, perceberá o leitor se era vítima ou criminosa. E, nesse sentido, se a sua morte no metro de Helsínquia terá sido um aparente suicídio ou um inusitado assassinato.

Um salão de cabeleireiros que serve de apoio para a máfia dos cabelos com ramificações por países da região, mas também com ligações à América Latina é um dos temas que se desenvolve neste romance de Sofi Oksanen. Ficamos a saber que os cabelos ucranianos são os mais procurados graças à sua rara beleza ainda que as potenciais clientes nunca questionem a forma como chegam àquele salão de cabeleireiros, em Helsínquia.

O mesmo salão de cabeleireiro serve como ponte para o recrutamento de casais que pretendem realizar uma inseminação artificial recorrendo a raparigas jovens ou a mulheres que perderam a família na guerra, oriundas de países como a Geórgia e que, através de uma quantia irrisória de dinheiro, pouco significativa para os finlandeses, conseguem passar despercebidos graças à omissão da lei no que concerne às barrigas de aluguer na Geórgia.

Norma só pode contar consigo própria para poder sair de uma situação tão complexa quando tem dezenas de olhos postos em si. Um passo em falso será fatal!

Uma vez mais, Sofi Oksanen serve de voz para as mulheres que, em situação de desespero, utilizam o seu corpo em troca de uma quantia irrisória como forma de sobrevivência. Exploração sobre exploração, temos em “Norma” a denúncia de quem tem dinheiro e que se serve dele para esmagar quem não o tem, mas também sendo um dos móbiles destas redes mafiosas que, dadas as descrições por Sofi Oksanen neste romance, não deverá estar muito longe da realidade das geografias descritas.

Excertos:
“- Com esta varinha mágica tornamos os sonhos realidade. Nós somos padres, parteiras, terapeutas, médicas, agentes de rituais de passagem. Cobrimos as mulheres de papel de alumínio, toalhas e capas. Lavamo-las das suas vidas antigas e enviamo-las para vidas novas. É de nós que depende o êxito das mudanças na vida delas. No entanto, o ideal é mesmo quando as mulheres lhe tomam o gosto e estão prontas para pagar o que quer que seja por um bom cabelo.” (p. 95)

“- As clientes estão completamente malucas com os cabelos ucranianos. Que raio é que elas comem por lá? As mulheres dos países ricos estragam os cabelos com a comida processada que comem e gastam rios de dinheiro em todo o tipo de tratamentos. Na Roménia, pelo contrário, as mulheres do campo lavam os cabelos quando muito com sabão, usam talvez também algumas ervas e comem tomate criado nos seus jardins. Não admira que os cabelos romenos tenham cada vez mais sucesso. Mas isto aqui, isto é material de outra categoria.” (p. 99)

“A mulher contou às amigas que estava a fazer tratamentos de fertilização, as viagens à Geórgia passavam por viagens de férias, o trabalho do marido obrigava-o também a viajar para o estrangeiro e desta vez a mulher iria com ele. Passados seis meses, o casal regressaria à Finlândia com o seu filho biológico e, na certidão de nascimento, no espaço reservado à filiação, os nomes deles apareceriam como sendo os pais. A escolha do país fora determinada não só pela sua fraca legislação como pelo facto de os finlandeses não saberem praticamente nada sobre o país e o filho imprevisto do casal que não podia ter filhos, e as férias em Tbilisi não seriam associadas ao turismo de barrigas de aluguer. A Geórgia não tinha fama de ser uma fábrica de crianças, não havia escândalos, nem casos surpreendentes que chegassem aos noticiários internacionais. A guerra na Geórgia já havia sido esquecida, bem como as outras agitações na região, e ninguém pensava no facto de, em consequência dessas guerras, o país estar cheio de mulheres sozinhas que não tinham dinheiro e que precisavam de sustentar a família.” (p. 120)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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