Certamente o nome da narradora não foi escolhido ao acaso. Desde menina, Clara aprendeu a ser silenciosa, a apagar-se, como forma de sobrevivência, quando enfrentava a raiva da mãe. A primeira vez que deixou de se sentir insignificante e transparente foi quando começou a receber prendas, mimos e atenções do namorado. Mas, mesmo antes da primeira bofetada, ainda no namoro, o primeiro alarme surgiu quando ele lhe disse “a partir de agora sou eu quem toma conta de ti!”. Este tipo de discurso que para muitas jovens inseguras é um falso sinal de amor e protecção foi, no entanto, logo percepcionado por Clara como um sinal de posse a que se seguiu um processo de despersonalização que não mais parou. Mais tarde, já casada, ele insiste para que ela abandone o emprego, invocando o dinheiro que ele recebe ser suficiente e ela ter de ter disponibilidade total para quando nascerem os filhos. Mas Clara sempre percebeu que era fundamental preservar a sua independência económica, mesmo sendo pouco o que ganhava na biblioteca.
Como anteriormente referi este romance faz-nos seguir todo o ciclo da violência: as bofetadas, os pedidos de perdão, a violência bruta e inesperada e a vergonha de assumir uma “culpa” que não existe, os subterfúgios para esconder as marcas da violência e o despudor do agressor que mente descaradamente quando Clara vai parar ao hospital. Agressor e agredida entram no jogo da dissimulação, passando a própria agredida a tornar-se aliada do agressor ao esconder a violência dos outros, mesmo dos mais próximos – amigas e familiares – fechando-se sobre si própria, num misto de incompreensão, culpa e vergonha.
Até que chega o tempo em que ela se sente como “um trapo do chão” e culpada pelos efeitos da violência sobre o filho, única testemunha duma relação em que pai e mãe mais não são que predador/presa. A irmã desconfia, mas mesmo a amiga Rita ou desconhece ou não quer saber. Uma enfermeira que já mais do que uma vez a via chegar às urgências com desculpas inventadas, aconselha-a a sair daquele inferno e um homem fala-lhe de associações que ajudam mulheres vítimas de violência. Mas quando como Clara se está só, destroçada, sem qualquer auto-estima, é muito difícil quebrar esse ciclo de autodestruição em que se está mergulhada.
É muito fácil passar de agredida a agressora quando se dá o reverso da medalha, ou seja, quando o poder muda de mãos e este romance também foca esse aspecto. Assim como o efeito de reprodução do padrão de agressor numa criança que cresceu e vivenciou um ambiente de violência. E como é difícil reaprender a viver sem medo e em liberdade, quando durante muitos anos o medo e a insegurança constituíram a rotina quotidiana.
Como Ana Cristina Silva me sugeriu no dia do lançamento da segunda edição deste romance “Partilhe este livro com mulheres que conheça que tenham sido, ou sejam vítimas de violência.” Com efeito, este livro é um grito de esperança, pela forma positiva como se dá o desenlace na vida de Clara. Porque as mulheres não têm de ser vítimas, nem silenciadas, nem transparentes. A felicidade é um direito que assiste a todos, mulheres e homens.
2 de Dezembro de 2017
Almerinda Bento
Sem comentários:
Enviar um comentário