“A arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo.” (p. 104)
Assombroso e avassalador! Dois adjectivos que assentam no mais recente romance de Julian Barnes (n. 1946), “O Ruído do Tempo”, publicado pela Quetzal. Vencedor do “Man Booker Prize 2011”, com o romance “O Sentido do Fim”, Julian Barnes apresenta-nos uma obra que em o autor se transcende a si mesmo, fazendo a ponte entre o romance histórico e a literatura para a dissecação da
própria História, no que concerne à vida de Dmitri Dmitrievich Chostakovich (1906-1975), o compositor mais consagrado da União Soviética, e a relação com o Poder, que se traduz numa rota de colisão com a arte propriamente dita.
A narrativa inicia com o episódio que teve lugar em Janeiro de 1936, no Teatro Bolshoi, em que Chostakovich se sente incomodado após a saída de Estaline e demais políticos representantes do Poder, no decurso da ópera “Lady McBeth do Distrito Mtensk”, sendo publicado, dois dias mais tarde, no jornal “Pravda” a frase “Chinfrim em vez de Música” em alusão à ópera. Algo idêntico volta a repetir-se em 1948.
Ainda que estes episódios tenham acontecido na juventude de Chostakovich, não impediram que se tornasse o compositor mais consagrado da União Soviética, sobretudo nos anos em que prevaleceu o culto da personalidade durante a era estalinista. Ainda que a arte fosse encarada como pertencente ao Povo, a mesma tinha de estar sob a alçada e orientação do Poder, esmagando e despojando os artistas do seu sentido criativo, na medida em que a alma humana constituía a base de trabalho dos músicos e dos escritores. “Os engenheiros da alma humana: uma frase gélida e mecanicista. E no entanto… com que trabalhava o artista, senão com a alma humana?” (p. 50-51) “De agora em diante, só haveria dois géneros de compositores: os que estavam vivos e assustados e os que estavam mortos.” (p. 59)
Julian Barnes disseca os murmúrios e angústias da alma de Chostakovich, reflectindo-se no próprio funcionamento da União Soviética, em particular, da era estalinista, na tensão existente entre consciência e obediência, sentimento de culpa e pessimismo, mascarado de optimismo. “Esfregar, esfregar, esfregar, vamos fazer desaparecer toda a velha pele russa e pintar-lhe por cima uma nova capa soviética, a brilhar. Mas nunca resultou – a tinta começou logo a saltar, mal foi aplicada.” (p. 83)
As contradições do regime soviético contribuíram para a alteração da interpretação dos conceitos optimismo e pessimismo, fortemente manipulados pelo recurso à ironia que deveria estabelecer a harmonia entre ambos, mas que, tantas vezes, se apresenta como forma de sobrevivência num regime claustrofóbico. De evitar é o recurso ao sarcasmo dado ser interpretado pelo Poder como “a linguagem do destruidor e do sabotador” (p. 98), referindo-se aos inimigos da URSS e do Povo. Por essa razão, o Poder “achava que, se matasse suficiente população e desse à restante população uma dieta de propaganda e terror, daí resultaria o optimismo.” (p. 83)
Com a subida de Krushchev ao poder, Chostakovich resolve, em certa medida, eventuais problemas e divergências com as cúpulas do Partido, dado que passa a ser reconhecido por este a sua importância e impacto no seio da URSS. Por outro lado, a ascensão e reconhecimento de Chostakovich nesta nova fase, pós-Estaline, implica ser esmagado na sua essência, vendo-se obrigado a tomar decisões e a participar em jogos de bastidores para os quais não estava preparado, não queria, mas também não podia rejeitar a oferta que se apresentava, agora, como um presente envenenado. “Para que serve, afinal, uma consciência, se não for como a língua que percorre os dentes à procura de cáries e procura zonas de fraqueza, duplicidade, cobardia, ilusão?” (p. 163) “Uma alma podia ser destruída de três maneiras: pelo que outros nos fizeram; pelo que outros nos obrigaram a fazer a nós próprios; e pelo que voluntariamente decidimos fazer a nós próprios.” (p. 179)
A alma atormentada de Chostakovich será seguramente um reflexo da alma russa em geral, sobretudo quando confrontado com a seguinte questão: “o que é pior para um compositor?” (p. 128) Reforçamos, o que é pior para um compositor quando somos confrontados com a seguinte premissa que reflecte mais de maio século de História da URSS?
“Lenine achava a música deprimente.
Estaline pensava que entendia e apreciava a música.
Krushchev desprezava a música.
O que é pior para um compositor?” (p. 128)
Numa relação tão complexa entre o compositor Chostakovich e o Poder no decurso de várias décadas, opondo Arte e espírito criativo ao Poder, é lícito questionar o que resta a artistas como Chostakovich? Julian Barnes dá-nos a resposta: “O que podíamos construir contra o ruído do tempo? Só essa música que está dentro de nós – a música do nosso ser -, que é transformado por alguns em música real. Que ao longo das décadas, se for suficientemente forte e verdadeira e pura para afogar o ruído do tempo, se transforma no murmúrio da História.” (p. 138)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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