uma das obras incontornáveis e singulares da literatura ocidental das últimas duas décadas. Dubravka Ugrešić inicia esta viagem com a referência à exposição-museu que se encontra no Jardim Zoológico de Berlim que contém os objectos que foram engolidos involuntariamente por Roland, a morsa. A partir desta invulgar exposição, a autora avança para os objectos que cada indivíduo colecciona ao longo da sua vida, podendo cada um de nós realizar uma exposição alusiva ao "quem sou eu?" O que une cada um dos objectos coleccionados é a memória individual que remete para a história de cada um. Numa escala ainda mais alargada e utilizando uma das expressões da autora, todos nós somos "uma raça de museu" em virtude de sermos "peças de museu ambulantes" sobretudo quando se tem como objectivo reconstituir uma determinada memória colectiva.
Exilada em Berlim durante a guerra dos Balcãs, Dubravka Ugrešić, viaja pelas memórias de uma ex-Jugoslávia desmantelada pela guerra, procurando na cidade que a acolhe as suas múltiplas máscaras de passado-presente questionando simultaneamente o futuro da região que foi o seu mesclado país. Em suma, "O Museu da Rendição Incondicional" é uma obra que questiona o sentido da História.
Primeiras duas páginas de "O Museu da Rendição Incondicional":
"No jardim zoológico de Berlim, ao lado da piscina que contém a morsa viva, há uma exposição invulgar. Num mostruário de vidro estão todas as coisas encontradas no estômago de Roland, a Morsa, que morreu a 21 de agosto de 1961. Ou mais precisamente:
um isqueiro cor-de-rosa, quatro paus de gelados (de madeira), um broche de metal em forma de poodle, um abre-garrafas, uma pulseira de senhora (de prata, provavelmente), um gancho de cabelo, um lápis de madeira, uma pistola de água de plástico de criança, uma faca de plástico, óculos de sol, uma pequena corrente, uma mola (pequena), um anel de borracha, um pára-quedas (brinquedo infantil), uma corrente de aço com cerca de 46 cm de comprimento,
quatro pregos (grandes), um carro de plástico verde, um pente de metal, um distintivo de plástico, uma bonequinha, uma lata de cerveja (Pilsner, 2,84 decilitros), uma caixa de fósforos, um sapato de bebé, uma bússola, uma pequena chave de carro, quatro moedas, uma faca com cabo de madeira, uma chucha, um molho de chaves (5), um cadeado, um saquinho de plástico com agulhas e linha.
O visitante fica de pé, diante da exposição invulgar, mais encantado do que horrorizado, como se estivesse perante achados arqueológicos. O visitante sabe que a sua sorte como exposição-de-museu foi determinada pelo acaso (o caprichoso apetite de Roland) mas ainda assim não consegue resistir ao pensamento poético de que com o tempo os objectos adquiriram algumas ligações secretas, mais subtis. Arrebatado por este pensamento, o visitante tenta então estabelecer coordenadas semânticas, reconstruir o contexto histórico (ocorre-lhe, por exemplo, que Roland morreu uma semana após a construção do Muro de Berlim), e por aí adiante.
Os capítulos e fragmentos que se seguem devem ser lidos de forma semelhante. Se o leitor sentir que não existem ligações significativas ou firmes entre eles, seja paciente: as ligações estabelecer-se-ão por si próprias de acordo com a sua vontade. E mais uma coisa: a questão de saber se este romance é autobiográfico poderia, a certa altura hipotética, dizer respeito à polícia, mas não ao leitor." (pp. 9-10)
Entrevista a Dubravka Ugrešić aquando da publicação do romance "O Museu da Rendição Incondicional", em Portugal, em 2011:
http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=291826
Texto da autoria de Jorge Navarro
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