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terça-feira, 14 de junho de 2016

A Convidada Escolhe: O Remorso de Baltazar Serapião

"o remorso de baltazar serapião", valter hugo mãe 2006
José Saramago começou por chamar "tsunami" a este livro e depois "uma revolução" no prefácio que corresponde às palavras que proferiu aquando da entrega do Prémio Literário José Saramago que foi atribuído em 2007 a "o remorso de baltazar serapião" .
Perturbador, sufocante, uma maldição foram as palavras que me ocorreram ao longo da leitura deste livro. É o terceiro que leio deste autor e é impossível ficar indiferente, se não mesmo chocada com a brutalidade que o perpassa, sendo que a violência sobre as mulheres é de tal forma, que quem o lê, pelo menos assim me aconteceu, oscila entre a vontade de acabar com a leitura ou chegar ao fim para ver se há mesmo remorso e se há uma esperança de que o ciclo absurdo de violência tenha um fim.
Não apenas a escolha de uma linguagem muito própria e da ausência de maiúsculas ou de sinais de pontuação para além do ponto e da vírgula nos lembram a escrita de Saramago, mas também a própria história aflitiva das mulheres deste livro me recordaram a maldição das personagens de "O Ensaio sobre a Cegueira", mas ao contrário deste em que há uma réstea de esperança, em "o remorso de baltazar serapião" não há sequer uma luz de esperança para as mulheres. E foi essa ausência de esperança que me levou a questionar e a tentar compreender a intenção do autor ao escrever este livro cruel sobre a condição das mulheres.
A história dos Sargas, a história de Ermesinda, de Brunilde, da Teresa Diaba, da mulher queimada, da mãe de Baltazar passa-se na longínqua (?) Idade Média, na chamada Idade das Trevas. Logo num dos primeiros capítulos, as mulheres são definidas como estando abaixo do nível dos animais, são burras, as suas vozes são perigosas, devem por isso estar caladas e ser seres de pouca fala, servindo apenas como parideiras e para responder às necessidades dos homens. "O amor era uma maldade dos homens, assim como um plano esperto para fazer com que as mulheres se abeirassem deles e se mantivessem ali sem outra lógica senão ficar." Há um fatalismo, uma naturalização do ódio às mulheres, um desenrolar sufocante da espiral de violência. E nos dias de hoje, em todo o mundo "civilizado" em que a ciência, o pensamento e os direitos evoluíram tanto, como podemos compreender que a bestialidade machista subsista e continue ainda a ser considerada aceitável e justificável a violência de género, o femicídio, muitas vezes com a "desculpa" do ciúme, do sentimento de posse ou do "desvio" por parte da mulher a comportamentos que a sociedade patriarcal em que vivemos considera desejáveis?
Não estando na posse da intenção do autor quando se lançou na criação deste livro, entendo-o como uma denúncia do machismo na sua forma mais tenebrosa como uma marca persistente da sociedade patriarcal, na Idade Média e nos dias de hoje. Apenas uma personagem masculina – o Teodolindo, amigo de Baltazar – por diversas vezes sai do padrão generalizado de violência e total desrespeito pela identidade das mulheres, dando conselhos a Baltazar sobre a forma de lidar com a mulher – Ermesinda – opondo-se aos maus tratos que lhe dava e que a iam desfigurando. Mas Baltazar não faz mais do que reproduzir com Ermesinda o mesmo que viu ao seu pai fazer com a mãe: estropiar, deixá-las sem voz.
Muito mais haveria a dizer sobre este livro perturbador, mas fico-me por esta nota. Recentemente, numa entrevista, Lídia Jorge disse que "a literatura serve para inquietar e despertar as pessoas para a realidade". Penso firmemente que foi essa a intenção de Valter Hugo Mãe com este livro terrível.
Almerinda Bento

1 comentário:

  1. Adoro a escrita de Valter Hugo Mãe. Já li "A Desumanização" e "O Filho de Mil Homens", em ambos os livros é notória a profundidade com que o autor escreve sobre a morte e a dor. Tenho este na lista para ler/comprar, depois de ler o teu post acho que vou ter de o ler em breve ;)

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