O primeiro contacto que tive com a obra do chileno Hernán Rivera Letelier (n. 1950) foi com "A Arte da Ressurreição", obra que recebeu o Prémio Alfaguara Romance em 2010. Trata-se de um daqueles livros que dificilmente esquecemos, não só pelos seus personagens singulares como o Cristo de Elqui e María Magalena (qualquer semelhança com os Evangelhos nada mais é do que a mais pura coincidência), as histórias mais caricatas, algumas até surreais, conquistando o leitor a partir das primeiras páginas do livro.
Hernán Rivera Letelier imprime nessa obra o cariz de realismo mágico deixando o leitor encantado pelos personagens, sem, contudo, deixar de caracterizar a região das pampas, região rica em minas de salitre, incutindo à narrativa a dimensão socioeconómica e até cultural daquela região do Chile.
À semelhança de "A Arte da Ressurreição", "A Contadora de Filmes" (2009) é uma novela passada na mesma região chilena, embora sem a dimensão do realismo mágico, mas encantando de igual forma o leitor para uma obra pejada de emoções e sentimentos registando de igual modo as vivências das gentes daquelas paragens muito distantes dos grandes centros urbanos.
Imaginemos então pequenas comunidades que se fixam junto às minas de salitre, construindo casinhotos com péssimas condições, insalubres, dada a pobreza generalizada da população mineira. Comunidades com uma baixa escolaridade, frequentes casos de alcoolismo, gravidez na adolescência muitas vezes fruto de violação por parte de indivíduos muito mais velhos, ausência de atividades culturais que promovam a integridade e formação das pessoas enquanto cidadãos, tudo fatores que contribuem para um desnorte destas pequenas comunidades.
Assim, no caso específico de "A Contadora de Filmes" apresenta uma comunidade em que o cinema é a única forma de distração dos habitantes e mesmo assim, nem todos têm a disponibilidade económica para adquirirem os bilhetes de acesso.
Esta pequena novela tem o seu epicentro na família de María Margarita, a filha mais nova de cinco irmãos que vivem com o pai inválido na sequência de um acidente na mina. Como não há dinheiro para toda a família ir ao cinema, após um concurso familiar, Maria Margarita ficou incumbida de ir ao cinema e depois contar todos os pormenores do filme aos irmãos e ao pai. Perante uma tão grande recetividade, María Margarita começou a investir cada vez mais na forma como representa o papel de contadora de filmes ao ponto de a sua fama se espalhar rapidamente pela pampa.
Na sequência deste talento descoberto, o pai de María Margarita decidiu abrir as portas da sua casa à população faminta de histórias, no fundo, de algum entretenimento e até como alternativa ao cinema cuja entrada não conseguia suportar.
Numa pequena comunidade em que a luta diária é a luta pela sobrevivência, María Margarita veio a trazer um novo alento aos vizinhos e amigos, trazendo-lhes o prazer e a alegria de uma certa ilusão criada no decurso de uma história contada a partir de um filme. Aos poucos, a adolescente María Margarita tornou-se numa verdadeira "super star" da região pampina investindo numa malinha de acessórios para utilizar mediante o filme que contava.
O sucesso foi tanto que María Margarita começou a fazer visitas ao domicílio como forma de entreter aqueles que se encontravam inválidos ou que por uma ou outra razão não se deslocavam a casa da jovem. Num ápice, María Margarita passou a ser conhecida como "Hada Delcine contadora de filmes".
"Havia quem fosse ver o filme ao cinema e a seguir ia lá a casa ouvi-lo contar. Depois saíam a dizer que o filme que eu tinha contado era melhor do que aquele que tinham visto." (p. 41)
E assim vão passando os anos em que María Margarita se afirmou como a vedeta da sua localidade até que algo inesperado começa a abalar o estrelato. A chegada da televisão à região pampina fez com que ao fim de aproximadamente um ano, cada casa tivesse o seu aparelho deleitando-se com a novidade, cada um em sua casa, esquecendo-se aos poucos da contadora de filmes.
Como se não bastasse, muitas das minas de salitre são encerradas por decisão governamental levando a que as pequenas comunidades procurem emprego noutras regiões do país. Assim, María Margarita perde o seu lugar de estrela dando lugar a um fantasma daquelas paragens.
Se por um lado "A Contadora de Filmes" nos permite uma viagem enternecedora através de uma jovem que nos leva a sonhar, por outro lado, também nos evidencia de como na vida tudo pode ser volátil e que de uma situação à outra tudo pode acontecer em três tempos como se de alguma forma o mundo desmoronasse aos nossos pés.
O autor Hernán Rivera Letelier é um excelente contista capaz de conduzir o leitor pelas ruas da alegria, do sorriso, mas também da tristeza e das lágrimas se for preciso. É difícil ler qualquer uma destas duas obras sem ficar-se enternecido pelos seus personagens, mas também não deixa de se sentir de certa forma magoado com a pobreza excessiva apresentada na região que o autor tão bem conhece, apontando o dedo às discrepâncias abusivas entre ricos e pobres ao ponto de os ricos serem excessivamente ricos e os pobres serem miseráveis.
Excerto:
"Entretanto, no acampamento, as pessoas começaram a falar de mim. «É a menina que conta filmes», alcançava ouvir às vezes, enquanto fazia bicha para o pão na mercearia. Ou quando passava pela rua do comércio à saída da escola. Mas a minha popularidade firmou-se definitivamente na tarde em que, ao voltar do cinema, descobri que havia mais gente do que era normal à minha espera lá em casa.
Além dos amigos dos meus irmãos – que já tinham passado de olhar pela janela a entrar e sentar-se no
chão -, o meu pai tinha convidado dois antigos companheiros de trabalho, que vieram ouvir-me acompanhados de esposas e filhos. Os meus irmãos tiveram de ceder o banco e de se sentar no chão com os amigos.
Enquanto tomava a minha caneca de chá e me preparava para contar o filme, de pé contra a parede branca, o meu pai não parava de repetir aos seus convidados que, embora o filme fosse a preto-e-branco, e a meio ecrã, esta menininha, compadres, até parece que o conta em ‘technicolor’ e ‘cinemascope’.
«Já vão ver pelos vossos próprios olhos.»
Contar o filme com mais público pareceu-me fascinante. Sentia-me uma verdadeira artista. Acho que dessa vez fiz uma das minhas melhores narrações. O filme era uma comédia musical, com a atuação da Marisol, a menina prodígio de Espanha. As visitas ficaram embasbacadas. E não só pela minha maneira de contar e representar, também pela interpretação das canções.
No fim, os aplausos soaram-me como música aos ouvidos.
A partir desse dia, começou a falar-se abertamente do meu talento especial de contadora de filmes, e a cada noite eram mais os amigos do meu pai que se faziam convidados para irem lá a casa ouvir-me.
Ver-me e ouvir-me." (pp. 39-40)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Li o livro há algum tempo e também adorei!! Ler a sua opinião levou-me a rever a história! Um livro belíssimo!
ResponderEliminarDo mesmo autor, sugiro o romance magistral "A Arte da Ressurreição".
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