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sexta-feira, 11 de março de 2016

A Escolha do Jorge: Vozes de Chernobyl

Há livros que nos fazem refletir sobre os limites do leitor no que respeita à angústia, à perturbação e até à náusea que provocam face a histórias tão dramáticas, tão pejadas de dor e de terror. Nos livros de ficção, o leitor enquanto sujeito tem a capacidade de se distanciar do objeto por muito doloroso que seja o seu conteúdo, porque compreende que o livro enquanto objeto constitui uma fonte de prazer e de distração e que as histórias nele contidas não passam de ficção independentemente de poderem ou não basear-se em acontecimentos históricos.
Já no caso das obras de não-ficção, o retorno do sujeito a si próprio no decurso da apropriação da obra enquanto objeto, pode constituir algo de angustiante e perturbador. Embora o sujeito (leitor), regra geral, não tenha experiência de cenários traumáticos, não deixa de ficar perturbado com o desfilar de "vozes" que contam a sua experiência, quer se trate de um dado episódio que teve lugar durante a 2ª Guerra Mundial, especificamente com a perseguição e morte aos judeus (Holocausto), os Gulags estalinistas ou o desastre nuclear de Chernobyl (1986), episódios negros da História do século XX que direta e/ou indirectamente vitimaram milhões de pessoas.
Mas para além do número de mortes como consequência dos episódios acima indicados, o desastre nuclear de Chernobyl teve (tem ainda) um efeito devastador, a longo prazo, na população, animais e na natureza em geral, havendo ainda, à semelhança de Hiroxima e Nagásaqui, uma forte incidência de radioatividade na terra, na água e no ar entrando no corpo humano, instalando-se, desenvolvendo inúmeros casos de cancros, problemas ao nível psiquiátrico, além de problemas relacionados com o sistema nervoso central, não esquecendo as malformações genéticas que ainda hoje ocorrem, independentemente de ter sido lançada a bomba atómica ou de ter rebentado o reator nuclear.
"Vozes de Chernobyl" é o primeiro de cinco livros da bielorrussa Svetlana Alexievich (Prémio Nobel de Literatura de 2015) que integra a chamada "Vozes da Utopia" da qual faz parte "O Fim do Homem Soviético" publicado em Portugal no ano passado.
O estilo de escrita de Svetlana Alexievich é difícil de categorizar na medida em que há um coro de vozes que desfilam ao longo das suas obras. Vozes que têm algo a dizer. Vozes que nunca se fizeram ouvir. Um pedido de socorro. Um ato de liberdade. Mais do que um ensaio, o estilo de Svetlana Alexievich baseia-se em coser de forma habilidosa todo um conjunto de histórias de pessoas que não cabem nos livros comuns. Há um fio condutor, uma sequência lógica na apresentação das histórias reais, de pessoas de carne e osso, levando o leitor imaginar um palco onde estas personagens vão entrando à vez e contando o que lhes vai na alma.
É neste sentido que refiro a ideia inicial do texto sobre se existem limites para o leitor no que respeita à dor, à angústia e à perturbação no decurso da leitura. A leitura de "Vozes de Chernobyl" faz-se acompanhar de uma constante sensação de náusea, uma sensação estranha de peso numa parte recôndita do nosso ser, além de serem várias as vezes em que os olhos ficam aguados perante tantas palavras de dor, mas também de amor e de morte.
26 de abril de 1986; passavam 23 minutos da uma hora da manhã quando rebentou o quarto reator da Central Nuclear de Chernobyl, ardendo durante dez dias consecutivos, tornando-se assim no maior desastre tecnológico do século XX.
A URSS sob os desígnios de Gorbatchev manteve silêncio o mais possível sobre o desastre face ao exterior e quando o fez manteve sempre uma posição de pouca relevância dando a entender que não passava de um simples incêndio então extinto. Mas também internamente, a decisão política foi de faltar à verdade às populações num raio considerável de Chernobyl como forma de evitar o pânico. A própria população quando se começa a aperceber de que a explosão do reator era mais grave do que que as notícias explicavam, também não estava sensibilizada para as consequências nefastas da radioatividade dado que médicos, cientistas e outros especialistas técnicos estavam expressamente proibidos de explicar às populações como agir perante a calamidade em curso. A evacuação de aldeias inteiras só ocorreu mais tarde por decisão política na sequência das inúmeras pressões internas e externas.
As "vozes" que desfilam ao longo da obra não só relatam as suas experiências ou as dos seus familiares, mas vão também tecendo considerações sobre a mentalidade de toda uma população que integrava a URSS e que agia em consonância com um quadro de valores vigente durante mais de 60 anos. Se por um lado houve a necessidade de recrutar bombeiros e militares para gerirem os efeitos diretos do incêndio no decurso da explosão do reator, também é preciso não esquecer os inúmeros voluntários que se ofereceram para ajudar na causa. Uns e outros sentiam a consciência de dever, havia a ideia de um "nós" que faz parte de um todo, havia o "homem soviético" que era o reflexo de toda uma mentalidade transmitida de geração em geração no intuito de levar avante o socialismo soviético.
Estimam-se em mais de 600 000 homens que colaboraram na tarefa ignominiosa e sem meios especializados e de protecção face à excessiva radioatividade. Estes homens conhecidos como liquidadores receberam do Partido/Estado um diploma, uma medalha e algum dinheiro que variava consoante a exposição à radiação. Em suma, o Partido/Estado premiou estes homens com doenças graves e com a morte. Eram os novos heróis cuja coragem era posta ao serviço da URSS para o proveito de todos! Porém, tornaram-se "objetos radioativos" cujo corpo se transformava em algo indescritível ao longo de duas semanas culminando com a morte.
O primeiro e último relatos de "Vozes de Chernobyl" são contados no feminino. São esposas de liquidadores que deram a vida por uma causa maior, assim o consideravam. A URSS encarregou-se de os tornar heróis de Estado antes de morrerem, antes da eternidade… Voltando a estes dois relatos, são os mais extensos da obra e neles pesam duas palavras "amor" e "morte". Compreendemos que mesmo após a morte dos maridos, mantém-se a ideia, mais, o sentimento de "amor infinito", na medida em que estas mulheres revestiram-se de uma força interior de tal forma imensa que abalam as estruturas emocionais do leitor. Como é possível aguentar tanto sofrimento com o sofrimento de quem se ama? Lições de vida perante doses de sofrimento inimagináveis ante um ser humano que se transforma em dias num ser mutante, radioativo, algo a lembrar "A Metamorfose" de Kafka, porém, real, e isso marca toda a diferença.
Mais, é bastante interessante nos dois relatos a ideia de amor infinito associado à intimidade do seio familiar. Certos aspetos e situações específicas do foro familiar passados entre quatro paredes denota o papel importante das mulheres na relação familiar, com o marido e com os filhos. Mas no aspeto da relação afetiva e sexual é bastante interessante que perante uma ditadura de cariz militar, os afetos ganhem tamanha preponderância com um papel extremamente ativo por parte das mulheres.
São várias as "vozes" que associam a explosão de Chernobyl à "explosão" do comunismo e, consequentemente, da própria URSS. Um depoimento interessante é aquele que compara o socialismo soviético a "uma mistura de prisão e jardim de infância". A explosão de Chernobyl contribuiu para que as pessoas das áreas afectadas passassem a encarar a realidade e o mundo de forma diferente. O objetivo perante tal desastre (ou desgraça) era sobreviver e se antes de Chernobyl havia um "nós" como referência e possibilidade na consolidação do socialismo soviético, no depois de Chernobyl, gradualmente, no seio de cada localidade, cada habitante eleva a sua voz de forma determinada dizendo "eu não quero morrer". Chernobyl tornou-se gradualmente na voz da consciência de cada habitante em que este tornou-se "egoísta" por querer viver fora da prisão do socialismo. Esta passagem do "nós" ao "eu" constituiu a tomada de consciência da liberdade de cada habitante determinado em (sobre)viver a Chernobyl e, em última instância ao socialismo soviético. Assim, compreendemos que Chernobyl devolveu à população a consciência e liberdade da sua situação, da sua fatalidade, constituindo em certa medida como a "machadada" final no comunismo e na URSS.
Uma das "vozes" diz "somos todos chernobylianos" (p. 260) ao passo que outra refere "Acredito na História. No julgamento da História… Chernobyl não acabou, só começou…" (p. 294)

Excertos:
"Começamos a perguntar-nos… Se não me engano… Provavelmente, passados três ou quatro anos… Quando adoeceu um, depois outro… Alguém morreu… Enlouqueceu… Suicidou-se… Então é que começámos a pensar… Compreenderemos alguma coisa, acho eu, daqui a vinte ou trinta anos." (p. 103)

"Voltámos para casa. Tirei tudo, despi toda a roupa que usava lá e atirei-a para a conduta de lixo. Quanto ao barrete, dei-o ao meu filho pequeno. Ele pedira-mo muito. Andava de barrete sem nunca o tirar. Dois anos depois foi-lhe diagnosticado um tumor cerebral… (p. 104)

"Um amigo estava a morrer… Aumentou de volume, inchou… Como um barril… E o vizinho… Operador de guindaste, também esteve lá. Ficou preto como carvão, secou até ficar do tamanho de uma criança. Não percebo como será a minha morte… Se eu a pedisse, pediria uma morte comum. Não chernobyliana." (pp. 114-115)

"Tenho o conhecimento humano em grande conta. E tudo o que o Homem criou. O conhecimento… O conhecimento em si não pode ser criminoso. Hoje os cientistas também são vítimas de Chernobyl. Quero viver depois de Chernobyl, e não morrer depois de Chernobyl. Quero perceber a que me posso agarrar na minha fé. O que é que me dá força?" (p. 158)

"«Herói… Heróis… Quem são eles hoje? Para mim, é o médico que, apesar das ordens de cima, diz a verdade às pessoas. Um jornalista, um cientista. Mas como disse o editor na reunião: "Lembrem-se! Não temos nem médicos, nem professores, nem cientistas, nem jornalistas, hoje temos todos a mesma profissão: o homem soviético.»" (p. 162)

"Eu sou pelo progresso! Pela ciência! Já nenhum de nós desiste da lâmpada elétrica… Começou a negócio do medo… Vendem o medo chernobyliano, porque não temos mais nada para vender no mercado mundial. É um novo produto: vendemos o nosso sofrimento." (p. 189)

"Chernobyl é uma catástrofe da mentalidade russa. (…) Não foi um reator que explodiu, mas todo um sistema de valores." (p. 237)

"Entre os trabalhadores da central nuclear de Chernobyl, havia muita gente das aldeias. Durante o dia estão no reator, e à tarde, nos seus próprios quintais ou nos quintais dos pais numa aldeia vizinha, onde se plantam batatas com a ajuda de uma pá e se espalha estrume com uma forquilha… A apanha também é feita à mão… A consciência destes trabalhadores da central existia em duas realidades diferentes, em duas épocas, a da pedra e a nuclear. Em duas épocas. O homem balançava constantemente, como um pêndulo. Imagine um caminho de ferro construído por excelentes engenheiros ferroviários, vai um comboio a toda a velocidade, mas no lugar dos maquinistas estão os cocheiros do passado. Os cocheiros. É o destino da Rússia: viajar em duas culturas. É o átomo e a pá." (p. 238)

"O nosso povo está programado para qualquer desgraça. Sempre à espera de uma desgraça. E a felicidade? A felicidade é uma coisa provisória, casual. (…) Não temos nada além do sofrimento. Não temos outra história, não temos outra cultura." (p. 271)

"Os nossos homens é que são homens! Verdadeiros homens russos! Valentes! Combatem o reator! Não temem pela vida! Sobem ao telhado derretido com as mãos desprotegidas ou só com umas luvas de lona (…). (…) Mas a ausência do medo por si mesmo também é uma espécie de barbaridade. Dizemos sempre nós e não eu: «vamos demonstrar o heroísmo soviético», «vamos mostrar o caráter soviético». A todo o mundo! Mas isto sou eu! Eu não quero morrer… Eu tenho medo…" (p. 298)​

Texto da autoria de Jorge Navarro

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