Moderato cantabile é o primeiro de três andamentos que compõem a sonatina em F major, op. 168 do compositor austríaco Anton Diabelli. Para se conseguir tocá-la é preciso treinar, repetir escalas até à exaustão, entendê-la e amá-la. De que vale à professora de piano enfurecer-se com o seu aluno se ele está nas aulas por obrigação, tocando automaticamente nas teclas, mas atento aos sons do mar e dos rebocadores lá fora no cais? Para que lhe servem aquelas aulas, se para a professora o piano tem como fim "exercitar os dedos e disciplinar o carácter" e ele o que quer é imaginar-se num daqueles barcos ou a voar com a brisa?
"Moderato Cantabile" é um exercício de escrita muito cinematográfico, em torno de uma mulher (Anne), o filho, um homem (Chauvin) e um conjunto de personagens que repetem rotinas, surgindo como pano de fundo numa terra numa zona portuária. Seja no andar da professora de piano, de janelas abertas para os sons exteriores, mas tão alto que não se consegue avistar o mar; no café onde Anne e Chauvin se encontram para beber e falar do homicídio que ali ocorreu; no mesmo café onde os operários da fundição a caminho de casa param para beber um copo ao fim dum dia de trabalho; no passeio pelo cais; na rua exterior ao café onde o "tesouro" brinca com outros rapazes, ou a caminho da casa ao fim do boulevard de la Mer.
À medida que se lê, todos os sentidos são convocados a acompanhar a leitura. Os sons das escalas, do piano, do grito da mulher assassinada, dos rebocadores e da vida no cais, das pessoas na rua, do rádio do café, da sirene que anuncia o fim da jornada de trabalho. O vento constante ou a brisa persistente que arrefece as tardes mais quentes. As faias e as alfenas que habitam o jardim da casa ao fim do boulevard de la Mer ou a presença e cheiro intenso das magnólias. O sabor e a cor do vinho, do salmão ou do pato com laranja cuidadosamente dispostos em travessas oferecidos aos convivas.
Anne é uma mulher que sai do que se convenciona para uma mulher portar-se em sociedade. Entra no café, senta-se ao balcão e bebe copo atrás de copo, estabelece conversa com um desconhecido, apresenta-se embriagada e desgrenhada numa recepção, desculpabiliza o desinteresse do filho pela rigidez da disciplina das aulas de piano. A dona do café olha-a de forma repreensiva por ser mulher e estar alcoolizada e os operários vêem-na como uma mulher adúltera. "As mulheres que são esposas servem para dar felicidade aos homens" o que não é o caso de Anne. Ela gostaria de entender o assassinato daquela mulher que foi morta naquele café e no final ela própria se considera morta. As conversas com Chauvin são inconclusivas e ele próprio lhe diz: "Não vale a pena tentar compreender. Há coisas que não se chega a compreender." O álcool é apenas um pretexto para tentar ir ao fundo daquele crime.
A leitura deste livro intenso de Marguerite Duras com uma estrutura narrativa não tradicional espicaçou-me a vontade de ler outros dois livros da autora que há muito aguardam na estante a hora de serem abertos e desvendados.
Almerinda Bento
Sem comentários:
Enviar um comentário