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quinta-feira, 31 de março de 2016

A Escolha do Jorge: Uma Solidão Demasiado Ruidosa

Bohumil Hrabal (1914-1997) é considerado um dos grandes nomes da literatura checa do século XX na sequência de ter estado votado ao esquecimento pelo facto de as suas obras terem sido proibidas durante o regime comunista.
Bohumil Hrabal juntamente com outros dois amigos ligados às artes e às letras foram os fundadores do explosionismo, um movimento que surgiu na Checoslováquia na segunda metade da década de 40, tendo como linhas de força a sombra da 2ª Guerra Mundial, mas também o inconformismo face à nova realidade sob a égide do comunismo no país.
Licenciado em direito, Bohumil Hrabal acabará por exercer inúmeros ofícios que em certa medida influenciarão algumas das temáticas desenvolvidas nas suas obras. De escriturário, a fiel de armazém, operário metalúrgico, empregado dos caminhos-de-ferro e embalador de papel velho são algumas das profissões que Bohumil Hrabal exercerá durante a sua vida.
Em síntese, estas profissões podem resumir-se a duas palavras: máquinas e papel/livros. Estas duas palavras correspondem ao cerne da sua obra "Uma Solidão Demasiado Ruidosa" (1976) apresentando Hanta, um senhor já com idade avançada cujo ofício há trinta e cinco anos é prensar livros velhos, esquecidos e perdidos numa prensa hidráulica que se acumulam em grandes quantidades, numa cave tal qual o mito de Sísifo retratado por Albert Camus e recuperado pelo próprio Hrabal na obra.
Um trabalho gigantesco e interminável que segue em linha com a própria atitude de Hanta que é transformar cada bloco de livros prensados numa obra de arte escolhendo citações ou páginas de livros de que muito aprecia para compor o arranjo final do bloco prensado. Trata-se assim da sua imagem de marca ainda que dificulte o seu trabalho ouvindo com frequência as queixas do patrão.
Hanta é, pois, a personificação e valorização do trabalho do artesão em oposição ao operário, uma espécie de homem-máquina que caminha gradualmente para a robotização. Recorde-se o filme "Tempos Modernos"… Com o passar dos anos, o papel do artesão na sociedade foi diminuindo em detrimento da produção em massa, contribuindo, dessa forma, para que o homem se identifique menos (ou não se identifique de todo) com o produto final.
Hanta tornou-se um indivíduo culto ao longo da vida não que o pretendesse, como várias vezes refere ao longo da narrativa, mas graças aos livros que lhe vão passando pelas mãos e que por curiosidade nuns casos, e por interesse noutros, acabou por levar livros regularmente para casa "construindo" assim a sua biblioteca pessoal, salvando muitas obras e autores da prensa hidráulica, alguns para todo o sempre.
A biblioteca pessoal de Hanta é significativa no número de volumes acumulados ao longo dos trinta e cinco anos como prensador de livros ao ponto de quase ser engolido por tantos volumes que ocupam quase toda a casa.
Ainda em relação ao trabalho de Hanta, o anti-herói de "Uma Solidão Demasiado Ruidosa" já está a pensar na altura em que se vai aposentar e sendo tão forte a ligação que tem aos livros e à prensa hidráulica que é apresentada como uma espécie de apêndice corporal com a qual estabeleceu uma relação emocional e afetiva, Hanta está a planear comprar a prensa e levá-la para o quintal do tio que, por sua vez, enquanto empregado dos caminhos-de-ferro também adquiriu juntamente com os seus antigos colegas de profissão uma agulha e uma locomotiva velha que instalaram no quintal para que as crianças possam brincar, mas sobretudo para eles, aposentados, brincarem nos tempos livres simulando a ocupação de outros tempos, de toda uma vida.
São inúmeras as referências aos filósofos gregos e à cultura grega em geral como base do pensamento de Hanta, não esquecendo os filósofos alemães como Kant, Hegel e Schelling ou Goethe no caso da literatura que têm um impacto relevante na cultura e pensamento checos.
São várias as passagens que poderiam ser selecionadas para trazer a debate dada a riqueza e concentração de ideias apresentadas capítulo a capítulo, no entanto há um momento que me parece interessante abordar que é quando Hanta decide proteger em sua casa uma cigana adolescente que procura alimento e algum conforto. O episódio é passado durante a ocupação nazi e a cigana é apanhada e enviada para um campo de concentração. Não deixa de ser curioso tanto quanto interessante que Bohumil Hrabal coloca neste episódio a proteção da cigana por Hanta ainda que se trate de um dos grupos mais discriminados em toda a Europa durante vários séculos, e simultaneamente um dos grupos perseguidos pelos nazis.
Face à ausência da cigana, Hanta só consegue concretizar a sua "vingança pessoal" através do recurso à prensa hidráulica quando lhe aparece na cave todo um leque de literatura e brochuras nazis, não esquecendo inúmeras fotografias de Hitler entre muitos outros elementos do seu séquito. Foi este o recurso de Hanta como forma de eliminação do nazismo da sua vida, uma espécie de desnazificação como forma de reabilitação da vida da pequena cigana.
Mas Hanta não tem uma vida fácil. O trabalho é duro e o patrão não perdoa pequenos deslizes. Hanta é vítima da nova realidade em que a quantidade, os números, os objetivos constituem a regra de ouro e o segredo do futuro. Hanta é então despedido. É substituído por jovens que prensam e despacham o trabalho em tempo recorde, mas fazem-no sem arte, não se identificam com o trabalho, além de que um livro de Kant ou de Goethe deixam de estar a salvo graças à ignorância que agora se instala gradualmente nas massas.
Nada resta a Hanta para além dos seus livros. Sem emprego e sem a perspetiva de conseguir adquirir uma prensa hidráulica para a sua reforma, Hanta decide fundir-se com a sua companheira de toda uma vida de trabalho. Prensa-se a si próprio. Destrói-se transformando-se a si próprio numa obra de arte. Escolhe uma frase do seu livro preferido, de Novalis, para encerrar o círculo: "Cada objeto amado é o centro do Jardim do Paraíso…"
Segundo Hanta, a realidade desenvolve-se em torno da ideia de "círculos melancólicos" em que o "progressus ad originem" se transforma no "regressus ad factum". Concluindo, "O teu cérebro não é senão um pacote de pensamentos esmagados pela prensa hidráulica." (p. 103)

Excertos:
"Tudo o que vejo neste mundo está animado dum movimento simultâneo de vaivém: tudo simultaneamente avança e simultaneamente recua, como o fole do ferreiro, como, ao sinal verde ou vermelho, tudo na minha prensa muda para o seu contrário, e só assim o mundo consegue avançar sem tropeçar. Há já trinta e cinco anos que empacoto papel velho, e para fazer bem o meu trabalho seria precisa formação universitária ou, pelo menos, o liceu clássico, mas o ideal ainda seria o seminário. Assim, na minha profissão, a espiral e o círculo correspondem-se, o «progressus ad futurum» confunde-se com o «regressus ad originem», e eu vivo tudo isto intensamente, e sendo, independentemente da minha vontade, culto, vivo numa felicidade infeliz e começo a acreditar que o «progressus ad originem» corresponde ao «regressus ad futrum». Assim, divirto-me do mesmo modo que o cidadão comum lê o «Jornal do Incrível» ao jantar. Ontem enterrámos o meu tio, o bardo que me indicou o meu caminho, construindo, no seu jardim dos subúrbios, o seu posto de agulheiro, pondo os carris entre as árvores, reparando com os seus amigos a locomotiva da marca Ohrenstein e Koppel, andando com as suas três vagonetes aos sábados e domingos, passeando as crianças de tarde e a si próprio à noite, bebendo cerveja pelas canecas de litro. Ontem enterrámos o meu tio, que teve uma apoplexia lá no seu posto de agulheiro; era no verão e os seus amigos tinham partido para o campo e para a praia, e como ninguém veio no calor de Julho o tio ficou quinze dias deitado no chão da barraca, até que o maquinista o encontrou coberto de moscas e vermes: o seu corpo tinha-se derretido, no linóleo, como um ‘camembert’ demasiado mole. (…) Pus-lhe na cabeça o seu boné de ferroviário que estava pendurado na barraca, trouxe um livro de Immanuel Kant e abri entre os seus dedos aquele belo texto, que me comovia sempre… «Duas coisas enchem o meu pensamento duma admiração sempre nova e crescente… o céu estrelado em cima de mim e a lei moral dentro de mim…». Mas depois mudei de ideias, procurei frases mais belas ainda do jovem Kant… «Quando o luar tremente duma noite de Verão está cheio das estrelas faiscantes e a lua está no seu apogeu, atinjo lentamente um estado de alta sensibilidade, feito de amizade e de desprezo do mundo e da eternidade…». Abri o armário e lá estava a colecção que o tio me mostrava frequentemente, mas eu não me interessava por ela, era a colecção de chapinhas multicolores que enchiam caixas inteiras; quando o tio trabalhava na estação, divertia-me pondo nos carris bocados de cobre, latão, estanho, ferro e outros metais coloridos, e após a passagem do comboio apanhava aquelas peças que se tinham metamorfoseado em estranhas formas marteladas que, à noite, o tio compunha em ciclos: cada piqueta tinha o seu nome conforme a associação de ideias que provocava, aquelas caixas e gavetas pareciam gavetas com colecções de borboletas orientais, caixas de bombons vazias, cheias de embalagens coloridas e amarrotadas de nogat com chocolate. Despejei uma caixa após outra no caixão junto do rio, cobri-o com aquelas plaquetas preciosas e só depois os gatos pingados fecharam a tampa do caixão: o tio lá ficou coberto de condecorações, medalhas e ordens como um alto dignatário, o tio parecia tão solene no caixão porque eu o tinha embonecado como se fizesse e prensasse um pacote muito belo." (pp. 60-62)

Texto elaborado por Jorge Navarro


2 comentários:

  1. Fiquei com vontade de incluir este escritor nas minhas próximas leituras.

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  2. Bohumil Hrabal é de longe a minha grande descoberta este ano! Um universo muito próprio que vale a pena ser (re)descoberto.

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