Hermann Ungar (1893-1929) foi um escritor checo, judeu, de língua alemã que durante décadas ficou esquecido nos meios culturais europeus devido impacto das obras de Franz Kafka (1883-1924), seu contemporâneo, e também pelo facto de as suas obras terem sido queimadas do decurso dos "autos-de-fé" do III Reich, em 1933.
Influenciado pelo expressionismo alemão assim como pelas teorias psicanalíticas que faziam carreira nas primeiras décadas do século XX, Hermann Ungar trouxe para a literatura e, no caso particular de "Os Mutilados", um conjunto de temas que à data da publicação, em 1923, eram considerados temas tabu, o que chocaria em certa medida todo o quadro de valores em que assentava a mentalidade do primeiro após-guerra. Se em pleno século XXI, "Os Mutilados" constitui uma obra que é difícil de digerir mesmo para mentes mais abertas, quanto mais durante a década de 20 do século passado. Passado durante os «loucos anos 20», Hermann Ungar aproveita o palco da sociedade que se modernizou ao ritmo das novas tendências musicais, da luta da mulher pela sua emancipação, a modernização das cidades como forma de relegar o passado doentio e triste relacionado com as perdas imensas na sequência da 1ª Guerra Mundial, conferindo também aos seus personagens a necessidade de viver o presente de forma intensa porque amanhã pode ser tarde demais.
É neste cenário que decorre a narrativa de "Os Mutilados", no entanto, Hermann Ungar apresenta um conjunto de personagens que se por um lado aparentam levar uma vida simples, por outro, são o mais puro reflexo da herança de traumas e de aspetos do foro psicológico que ditam em certa medida o estado da sociedade contemporânea independentemente de existir este hiato de tempo entre o período em que decorre a narrativa e os nossos dias.
Aparentemente inocente, a narrativa apresenta-nos Franz Folzer, um indivíduo que trabalha num banco na qualidade de administrativo tratando de toda a burocracia apresentando larga competência para o efeito em oposição às sérias dificuldades de interagir com outras pessoas à sua volta.
Com um quarto alugado na casa da viúva Klara Porges (representação ‘in extremis’ do expressionismo), Franz vê de um momento para o outro a sua vida a mudar a partir do momento em que a senhoria tudo faz para o seduzir apesar de ser mais velha não esquecendo a sua abundância de carnes disformes como tantas vezes é referenciado ao longo da obra.
Franz Polzer que teve uma infância difícil graças aos maus-tratos do pai e da tia sendo, pois, uma vítima daqueles que estão mais próximos de si, acabou, mais tarde, durante a vida adulta, por tornar-se vítima da própria sociedade face ao que esta lhe impôs do ponto de vista psicológico, emocional e até físico, para além daquilo que uma pessoa deveria ou seria capaz de suportar.
À medida que avançamos na leitura de "Os Mutilados", rapidamente nos apercebemos que entramos num filme de terror através do percurso de Franz Polzer na interação com os demais personagens.
Violência física, incesto, homossexualidade, prostituição, sadomasoquismo, atentado ao pudor, violação física e psicológica, fanatismo religioso, crimes de sangue, são alguns dos ingredientes que povoam o universo de "Os Mutilados".
No decurso da obra, compreendemos as razões que estiveram na base de este livro em particular ter sido queimado pelos nazis durante os "autos-de-fé", em 1933, não apenas pelas temáticas acima referidas contrárias a toda uma mentalidade em que se inscreve o Nacional-Socialismo. Além disso, um dos personagens principais, Karl, vê o seu corpo ser dilacerado por uma doença que o deixa inválido após a necessidade de recorrer à amputação de vários membros do seu corpo. Karl apesar de se ver diminuído enquanto homem, não deixa, contudo, de sentir desejo e mesmo perante a sua incapacidade manipula terceiros na tentativa de satisfazer as suas concupiscências, nem que para isso tenha de recorrer ao sadomasoquismo, primeiro numa vertente de cariz psicológica, a possível para si, com o objetivo de desencadear movimentos entre terceiros para concretizar o desejado.
De acordo com a mentalidade nazi, nunca em caso algum, um deficiente, físico ou mental, poderia desempenhar um papel preponderante na sociedade ao ponto de criar à sua volta uma rede que enaltecia o sexo (ilícito) constituindo em si mesmo uma espécie de mola à prática do sadomasoquismo. Como bem sabemos, muitos deficientes foram perseguidos e mortos durante o período nazi pela razão de que constituíam um peso para a sociedade no entender dos ideólogos nazis. Neste sentido, o personagem Karl apresentava-se em rota de colisão com o quadro de valores nazi ainda que na História do século XX é impossível falar dos nazis sem os associar a sádicos qualificados capazes de levar a cabo a morte de milhões de judeus, entre outras pessoas, vítimas das suas perseguições.
Esta ideia segue em linha com a ausência de problemas de consciência por parte de quem promove as práticas anteriormente indicadas tanto no caso dos nazis, como especificamente no caso de Karl, o personagem de "Os Mutilados". Graças à sua prosápia, Karl promove um conjunto de situações sórdidas sem que a consciência lhe pese um grama que seja tal como, anos mais tarde, os nazis tão bem conseguiram fazer.
Em oposição a Karl, temos o enfermeiro Sonntag que cuida de Karl. Trata-se de um antigo talhante que a dada altura na sua vida se converteu profundamente à doutrina cristã tornando-se um fanático fervoroso ao ponto de utilizar a religião como forma de dar continuidade a uma série de práticas hediondas, crimes de sangue, como se de alguma forma o crime só poderia ser justificado por um conjunto de novos crimes, havendo a necessidade de os reviver permanentemente. "Matei-a, falou-se disso. Estava de cama com as pernas partidas. Mas tinha força suficiente, e matei-a com a minha faca possuído por um ódio ímpio e profanei-a. (…) Não há palavras, não há fervor, não há remorso, apenas o acto pecaminoso como penitência, que lá está, e nunca mais conseguiremos apagá-lo (…)." (p. 184)
Esta ideia de expurgar o mal com o mal ‘ad eternum’ numa sequência de atos que se repetem no intuito de ceifar mais um sem número de vidas vem de certa forma contribuir para que "Os Mutilados" fosse literalmente apagado da cena literária alemã, talvez porque o autor tenha apresentado um conjunto de ideias que nalguns aspetos não apenas colidiam com o quadro de valores nazi, como nalguns casos possa mesmo ter ido para lá dessa forma de pensamento.
"Os Mutilados" é, pois, um livro inquietante, perturbador, sórdido pelas práticas estimuladas e cometidas, sem, contudo, deixar de constituir, também, um retrato, um triste retrato da sociedade contemporânea.
O futuro de Franz Polzer fica à consideração do leitor na medida em que se questiona o papel da família e da sociedade no desenvolvimento de uma pessoa e simultaneamente no alcançar da felicidade.
Após a leitura de "Os Mutilados", será lícito questionar se é possível ser feliz numa sociedade tão cinzenta uma vez que a fronteira entre o lícito e o ilícito, o bem e o mal é ténue ou mesmo inexistente.
A obra "Os Mutilados" assinala desta forma o início da atividade editorial da E-Primatur que nos presenteia com um autor praticamente desconhecido na Europa levantando assim inúmeras questões e reflexões ao nível da relação do eu com a sociedade. Um livro notável pejado de imagens que dificilmente esqueceremos e, neste caso, graças ao lado mais negro da natureza humana.
Excerto:
"Queria levantar-se, acordar a grávida. Queria colocar o seu rosto sobre a cabeça dela, e o risco do cabelo, o risco… «Nada era passado», queria dizer. Nada tinha terminado. «Fala!» Ela devia contar-lhe tudo. Como seduzira o miúdo, como o atraíra… ele não sabia nada, o miúdo… como ela o havia apanhado, o aliciara para si. E dos outros, de todos, devia contar tudo, devia soltar-se e contar como eles se deitaram sobre ela, onde é que lhe puseram as mãos, aqui e ali, assim e assado, precisamente, precisamente, como cada qual o fizera, quantas vezes e durante quanto tempo, e como ela gemera e resfolgara, devia contar tudo.
Queria puxar o edredão para trás e vê-la. O ventre inchado, os pêlos entre os peitos, escarranchados, cada um para seu lado, quando ela se deitava, a cara gorda, as mãos que tocaram todos aqueles homens por todo o lado. Era feia e gasta. Tinha o corpo amarelo. Mas: tinha que ser. Então tinha-se posto debaixo deles, debaixo deles todos, e todos a tinham usado, mas cada qual à sua maneira, à sua própria maneira, e de cada um deles tinha que lhe contar: assim e assado. E quem lhe tinha inchado o corpo, de quem era a criança! Queria destapá-la e ver-lhe o corpo: era tudo tão hediondo e uma tontura, mas não podia ser de outra maneira.
O estudante, o tenor e todos, um atrás do outro, não, não, não podia ser passado, tinha que se levar até ao fim. Ela ainda dormia. Então, ele levantou-se. Pôs-se ao lado da cama. O edredão ondulava até ao pescoço, onde ainda, ai Deus, onde ainda ondulava também a pavorosa barriga, e, no topo, lá estava o risco do cabelo. Queria tirar o edredão para ver a barriga onde estava a criança com aquele abominável risco rasgado entre as pernas, a criança naquele ventre gasto, sobre o qual se haviam roçado todos, uns atrás dos outros, sobre a criança, sobre o ventre." (pp. 169-170)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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