A proposta desta semana incide num pequeno livro de Alain Elkann (n. 1950) que é daqueles casos paradigmáticos de se tratar de um pequeno livro, com menos de sessenta páginas, mas que o leitor ao embarcar nestas breves páginas acaba por concluir que está perante uma obra notável.
Em tom intimista e com inúmeras notas autobiográficas, Alain Elkann trilha os caminhos do judaísmo trazendo-nos alguma luz sobre aquela religião monoteísta, apresentando também alguns dos problemas e desafios do mundo contemporâneo que se nos apresenta cada vez mais complexo.
Sem preconceitos e sem fazer juízos, o autor reflete sobre a essência do ser judeu. Nascido em Nova Iorque e vivendo atualmente em Roma, Alain Elkann considera-se "um judeu tresmalhado" (p. 19) na medida em que vivendo num mundo cristão, é através da observação de alguns dos rituais e comemoração de momentos importantes do calendário judaico que se sente verdadeiramente ele próprio, como pertencendo a um povo com mais de cinco mil anos de História.
Exemplo disso é a celebração do Yom Kipúr, uma das datas mais importantes do judaísmo que une todos os judeus, crentes e não crentes, em todo o mundo, em que através do jejum, da oração e do arrependimento, aproxima as pessoas entre si através de um conjunto de cerimónias que remete para o passado e para as raízes familiares. Parafraseando o autor através da primeira frase do livro "Na noite do Yom Kipúr, os mortos levantam-se e vêm rezar com os vivos." (p. 13)
O autor compreende bem o espírito errático do povo judeu através das múltiplas viagens de deslocação por parte da sua família oriunda de Jerusalém e que atravessou vários países da Europa até, por fim, se fixar nos EUA. Apesar de a família ter aprendido várias línguas estrangeiras, "mas a única que sempre a manteve unida foi a das orações" (p. 17), tais como o Shemá Israel que se reza diariamente ao acordar e o Kadish que se reza nas cerimónias religiosas e durante o luto. Mesmo não
compreendendo o sentido das palavras destas orações, Alain Elkann remete o assunto para a esfera a fé em si mesma, na medida em que é por o povo judeu fazer estas orações há vários milénios que acredita que faz parte de uma mesma cultura, mesmo não questionando o seu significado, importando apenas a crença em si mesma.
O autor alude ainda à questão do anti-semitismo, preconceito que tem acompanhado desde sempre o povo judeu, através da realização ‘pogroms’, tratando-se, pois, de um fenómeno com o qual os judeus se têm confrontado quase como se tratasse de algo que faz parte do destino deste povo ao longo dos séculos, culminando com a perseguição e morte de mais de seis milhões de judeus durante a 2ª Guerra Mundial. Nos dias que correm, é comum confundir-se anti-semitas com anti-israelitas na medida em que há um desagrado ou mesmo ódio crescente aos judeus que residem no Estado de Israel, nomeadamente por parte dos países muçulmanos situados no Médio Oriente.
É neste sentido que Alain Elkann remete esta questão do preconceito e do ódio em última instância e consequência para a necessidade do diálogo inter-religioso. Do mesmo modo que judeus e cristãos têm uma parte da vida em comum, a relação entre uns e outros foi ultrapassando as diferenças ainda que os cristãos tenham largamente perseguido, punido e assassinado milhares e milhares de judeus no contexto da Inquisição durante vários séculos. Em todo o caso, as duas religiões conseguiram estabelecer o diálogo entre si graças ao seu passado comum, não esquecendo o facto de ambas serem religiões monoteístas. "Deus ouve-nos em qualquer parte, disto estou certo" (p. 51), afirma Alain Elkann, e é com base neste conjunto de experiências que o autor é otimista na medida em que sente a necessidade de que seja reencontrado o diálogo entre judeus e muçulmanos sendo inevitável que isso venha a acontecer. "Queria que as diferenças fossem sentidas como uma riqueza do monoteísmo, como complementares e irmãs." (p. 37)
O autor tem a plena consciência de que há ainda um longo caminho a percorrer, não só enquanto indivíduo, como parte integrante do povo judeu. Esta jornada além de dura, é quase sempre solitária, como se estivesse a percorrer o deserto e perder-se nele tantas vezes, para mais tarde se (re)encontrar consigo e com Deus. Há uma passagem, uma das minhas preferidas deste livro, que resumem, no fundo, o sentido abrangente, universal desta complexa relação do homem com Deus e do homem na sua relação com o seu próximo. "Deus, o que é que me ensinou? O sentido do dever, a autodisciplina, o medo de que possa sofrer quem me está perto. A dor dos outros, mesmo a de um animal ou de uma planta, faz-me mal. Quando não percebo algo, quando me sinto impotente, quando tenho medo, rezo. Rezar faz-me entender que sou um homem e que deve haver alguém maior do que eu a quem confiar-me, a quem pedir desculpa ou dizer obrigado. Obrigado por me ter feito aprender a escrever, obrigado por me ter feito encontrar tantas pessoas que sabem amar, cozinhar, tratar, pintar, compor música. Eu envergonho-me por não saber ser generoso, paciente, por não conseguir ser completamente honesto comigo mesmo e com os outros. Por não ser indulgente, por não ter bastante piedade por quem me rodeia.
A palavra «Mitzváh» é simples, belíssima, quer dizer ao mesmo tempo sentido do dever, caridade, respeito por Deus e pelos outros. Eu não consigo fazer bastantes Mitzvót e tenho pena." (pp. 52-53)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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