O Astrágalo – Albertine Sarrazin (Antígona)
Albertine Sarrazin (1937-1967) é o mais recente nome a juntar aos escritores insubmissos da Antígona, apresentando-nos desta forma uma escrita que obteve bastante sucesso nos anos 60 sobretudo depois da sua morte trágica na sequência de complicações de uma operação a um rim.
O sucesso alcançado por Albertine Sarrazin integra-se no contexto dos movimentos estudantis da segunda metade dos anos 60 em França relacionados com a liberdade sexual dos jovens e a determinação das mulheres em consolidar a sua emancipação.
Francesa nascida na Algéria, Albertine Sarrazin desde cedo conheceu instituições de acolhimento e lares adoptivos acabando por se entregar ao furto e prostituição nalguns períodos da sua vida, levando-a à prisão, em Paris, em 1957.
Inconformada com a sua situação de presidiária, Albertine enceta um plano de fuga da prisão, saltando o muro acabando por partir o astrágalo… que dá nome à obra.
Em todos os momentos da obra, é muito ténue a linha divisória entre a ficção e a realidade na medida em que n’"O Astrágalo" a personagem Anne funde-se (ou confunde-se?) com a própria Albertine incluindo a particularidade de ter partido aquele osso.
Durante a fuga, e muito dorida, Anne (ou Albertine) é salva por Julien, um fora da lei que solicita a colaboração de um casal amigo que acolhe Anne mantendo-a em segredo em sua casa durante largos meses. A partir daqui, Anne constata que ao ter fugido da prisão acaba aos poucos por se envolver emocionalmente com um indivíduo que também deambula na senda do crime com vista à sua própria sobrevivência, sendo igualmente procurado pela polícia. Temos assim dois foragidos cujos destinos se cruzam e que tudo fazem para se manter juntos até que dure a aventura… ou a cama quente.
Aos poucos, Anne começa a sentir o cansaço de estar fechada em casa sem saber como lidar com as ausências frequentes de Julien que tem de garantir também a sua subsistência pagando igualmente o alojamento em casa dos seus amigos que, por seu turno, também vivem à margem da lei, Nini é prostituta e Pierre, o seu marido, é o seu chulo.
Tratamentos, operação, recuperação… saturação… Julien arranja uma nova casa para Anne, desta vez em Paris. Mais arriscado, mas próximo da realidade que Anne bem conhece, das ruas que tanto percorreu. A casa de Annie é o próximo destino da heroína, uma sexagenária, antiga prostituta, que sobrevive a fazer gravatas em parceria com o irmão e a cunhada. Se por um lado Anne vai sentindo alguma empatia com as histórias e a vida de Annie, aos poucos o sentimento de prisão regressa ao seu pensamento e coração. Anne apercebe-se que Julien afinal aquece outras camas e mesmo nunca desistindo dele, sente o grito da revolta que a devolve à rua, à sua antiga vida que tão bem (re)conhece nas ruas e vielas parisienses.
Entre o roubo e a prostituição com vista a juntar dinheiro para si e para Julien que entretanto é apanhado nas malhas da justiça, Anne maquina todo o tipo de planos sórdidos sobre terceiros para lhes extorquir o que lhe for possível. Para Anne não há limites! A rua é o seu mundo! E Julien o seu amor.
Conseguirá Anne fugir permanentemente à polícia e à lei? Conseguirá o seu espírito livre fundir-se com a liberdade de Julien? Oferecerá a rua a Anne tudo quanto Anne deseja? Afinal o que é ser e sentir-se (totalmente) livre?!
Esta é uma narrativa empolgante, bastante ritmada e alucinante que vicia o leitor desde a primeira página até ao final. A escrita de Albertine Sarrazin liberta-se de lugares-comuns, de prisões, de todo o género de situações que a façam sentir que leva uma vida igual à dos comuns dos mortais. Albertine Sarrazin (ou Anne) prefere as fendas, uma brecha por onde se possa escapulir. A sua natureza é demasiado nobre para se sentir fechada entre quatro paredes nem que para isso tenha de fugir da prisão e regressar ao mundo do crime.
Para os leitores de espíritos inconformados com a realidade cuja escrita reflete esse mesmo grito de protesto, este é um livro bastante recomendado. Viciante, pura adrenalina!
Excertos:
"A cadeira de inválido, na sala de jantar, tornou-se uma cadeira de amantes. Já não queríamos a caminha. Ou então mostro a Julien os hotéis da minha juventude. Esses momentos, onde os nossos
corpos e os nossos corações brincam e descansam um no outro, ressuscitam outros, passados anteriormente com outros homens. Sem vergonha, sem mentira, conto-os como histórias estranhas ou fictícias. O passado flameja, e depois apaga-se e cauteriza-se.
- Que nada manche este instante…" (p. 136)
"A minha liberdade tolhe-me os movimentos. Queria viver numa prisão de que soubesses trancar e arrombar a porta, por um pouco mais de tempo…" (p. 148)
"No comboio que me leva de volta a Paris, mergulho profundamente nos meus pensamentos. Com o mandado de captura lançado contra mim, o risco é sempre o mesmo, quer eu ande no engate, roube ou ande a passear; onde quer que vá, o que quer que faça, estou em falta. E estou em falta porque estou aqui, em vez de estar na prisão." (p. 160)
"Não, o despertador vai tocar, cuidado, tenho de aguentar até de manhã. Enfio-me na cama e retomo a noite onde a tinha deixado. Sejamos putas e digamos: «Querido…» O tipo aperta-me contra o seu sistema piloso eriçado e o seu nariz fremente, diz que me ama, que não sou uma rameira como as outras, que aquilo não é trabalho para mim e que ele fará tudo para me tirar daquela vida.
- Instalas-te aqui, vivo sozinho. Farás o que te apetecer, inclusivamente continuar com essa vida, se for essa a tua vontade, mas… porquê manter essa profissão infame? Dou-te tudo o que quiseres…
- Estás-te a esquecer do meu homem. Além disso, queres arriscar-te a ser preso como chulo se os chuis souberem que vivo aqui contigo? Não, meu querido, é impossível. Não conheces as regras do jogo…
- Mas eu amo-te…
Ontem Jean, hoje este gajo! Que chatos que eles são com aqueles «amo-te», como estão longe do amor!" (pp. 163-164)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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