Damon Galgut (n. 1963) é conhecido do público português através dos romances "Um Quarto Desconhecido" e "O Impostor", ambos publicados pela Alfaguara. "Verão Ártico" é a mais recente obra de Damon Galgut publicado recentemente pela Jacarandá.
"Verão Ártico" constitui uma biografia romanceada de um período da vida de Edward Morgan Forster, o escritor inglês que viveu entre 1879 e 1970, conhecido por alguns romances e contos tendo almejado grande projeção através de "Passagem para a Índia", o romance publicado em 1924.
Damon Galgut através de um discurso sensível e profundamente humano presenteia-nos com uma obra nos fala ao coração e à alma. Trata-se, pois, de uma obra que nos agarra desde as primeiras páginas e graças também ao facto de a escrita ser bastante visual, o leitor consegue vislumbrar muitas das descrições relativas a Inglaterra, Índia e Egito, países onde decorre a narrativa.
Damon Galgut não procura valorizar somente as capacidades e virtudes de E. M. Forster, mas tenta apresentar, na medida do possível, um homem com todas as suas qualidades e defeitos que lida com a sua tristeza e angústia não só devido à sua mãe ser uma pessoa bastante dominadora, mas também pelo facto de não saber como lidar com a sua homossexualidade. Tendo em consideração de tinham passado menos de vinte anos do processo de Oscar Wilde, E. M. Forster por muito que se sentisse atraído por outros homens, não chegou a concretizar um ato sexual a não ser depois dos 30 anos e quando estava fora do seu país, durante a 1ª Guerra Mundial.
Morgan, como é habitualmente tratado na obra e entre os seus amigos, vislumbrava a relação homossexual como uma visão romântica daquela que existia na Grécia Antiga, embora o contexto histórico, mas também social e económico fosse também outro no início do século XX. Morgan Não o concretizou esse "amor grego", embora tenha mantido, durante o período em que decorre a narrativa, duas relações afetitivas (à distância), de amor fraternal sem a dimensão sexual.
Masood, um indiano a quem Morgan deu lições de Latim, tornou-se no seu primeiro amor arrebatador que motivou a sua primeira viagem à Índia antes da 1ª Guerra Mundial. Mohammed foi o segundo amor de Morgan, um egípcio com quem conviveu em Alexandria ao longo de três anos no decurso da 1ª Guerra Mundial.
Nunca conseguindo concretizar o amor sexual com nenhum dos seus amantes, estes, por seu turno, nunca deixaram de lhe ser fiéis naquilo que de mais puro e sério que pode conter uma amizade. São inúmeras as passagens, os momentos em que Masood e Mahommed, tanto presencialmente como através das suas cartas que demonstram o mais sincero amor por Morgan. Foi esta a forma que Morgan encontrou para se relacionar com estes dois indivíduos, evitando danos maiores no que respeita à sua tristeza e angústia crónicas. Por outro lado, é este ponto de equilíbrio que Morgan conseguiu fazer brilhar aquela ideia de "amor grego" que, afinal, é mais de natureza espiritual que carnal. "Não fazes ideia de quanto o teu amor por mim me ajuda a suportar todos os meus problemas. Amo-te tanto que, sempre que me acontece qualquer coisa nova, não consigo deixar de pensar imediatamente em ti. Desejo ardentemente partilhar contigo o acontecimento, e desespero-me quando me apercebo de que estás tão longe." (p. 295); "(…) O verdadeiro afeto deixa qualquer coisa atrás de si, algo que perdura, com a sua misteriosa vida própria" (p. 311)
É interessante que do ponto de vista histórico e até social que as eventuais relações homossexuais estabelecidas entre alguns dos amigos e conhecidos de Morgan são fortemente hierarquizadas e até fundamentadas de acordo com a ideologia do Império Britânico de então, na medida em que há um senhor e um escravo refletindo-se, pois, esta mesma relação de força e de dependência entre aquele que ama e o amado à semelhança da sociedade grega e até romana da Antiguidade.
A questão de raça e de estatuto são frequentemente abordadas ao longo de "Verão Ártico" dado que aquele género de relações não só são mais difíceis de concretizar de forma assumida – à data – na Inglaterra, daí a abordagem de Searight, um militar de alta patente destacado na Índia explica a Morgan que naquele país as pessoas têm uma relação diferente com o corpo, fomentando, nesse sentido, uma maior abertura e facilidade, portanto, nas relações homossexuais independentemente de não serem propriamente bem vistas do ponto de vista da social.
Ao longo da narrativa, percebemos que também Morgan na sua relação com os seus dois amantes mantém claramente as ideias de raça e de estatuto sendo ele próprio o senhor e os amantes os amados (ainda que não se verifique a concretização do ato sexual).
Mais tarde, já na sua segunda viagem à Índia e com o objetivo de terminar o livro "Passagem para a Índia", Morgan estabelece uma relação de natureza sexual com um funcionário real (com algumas nuances de escravo) e é ao longo dessas páginas em que se percebe de modo claro o prazer de Morgan ao exercer força perante o seu amado (sem amar) graças ao exercício de poder sobre aquele. O próprio Morgan tem consciência da situação fazendo também a transposição dessa relação eminentemente física para a forma como a Grã-Bretanha exerce o seu poder no mundo.
Damon Galgut apresenta-nos um livro que está para além da temática da homossexualidade de E. M. Forster, é, pois, um livro pejado de humanidade e de sentimentos sem cair no sentimentalismo ridículo e sem sentido. Olhamos para um escritor que lida com todos os aspetos, dimensões da sua vida, anseios, receios, dificuldades e concretizações à semelhança de todas as outras pessoas.
À sua maneira, E. M. Forster e tantos outros amigos da sua geração contribuíram de uma forma ou de outra para, aos poucos, o seu país encarar de forma igual quem se considera de alguma forma diferente.
Damon Galgut tem garantidamente o dom da palavra capaz de prender o leitor sempre motivado ao longo de toda a narrativa, não esquecendo o facto de que procura sempre respeitar o personagem principal, as pessoas com quem aquele se relacionou e, em última instância, o próprio leitor.
A escolha do título do livro por Damon Galgut foi igualmente interessante e bem conseguido dado tratar-se de um conjunto de contos que E. M. Forster nunca viria a publicar.
"Verão Ártico" constitui uma agradável e doce surpresa no âmbito das publicações que tiveram lugar ao longo deste ano.
Excertos:
"Morgan teve a sensação desagradável de que o assunto se tinha desviado e de que estavam a falar de coisas diferentes. Ainda assim, respondeu:
- Eu também.
- Está ansioso por ver o seu amigo?
- Muito.
- Tem sentido a falta dele? Conheço tão bem essa sensação. E sou obrigado a procurar consolo noutro lado. Felizmente, nunca é preciso procurar muito, aqui na Índia. É mais difícil em Inglaterra, como bem sabe.
- O quê?
- Consolo.
Lançou-lhe um olhar cúmplice, e continuou:
- Mas conheci um guarda a cavalo em Hyde Park, ainda há poucas semanas.
Assustado pelo rumo que a conversa tinha tomado, Morgan decidiu tossir ligeiramente e fitar o mar. Searight tinha-se voltado para ele na cadeira, uma atitude de completa confidência. Depois de uma pausa, começou a falar do calor. Parecia ser um novo tema de conversa, mas era uma derivação sub-reptícia do tema anterior. Durante os últimos dias, a temperatura tinha disparado em flecha; muitos dos passageiros tinham começado a dormir no convés. E já reparara Morgan que alguns dos homens andavam de calções?
- Os mais velhos deviam ser proibidos - disse Searight -, por terem as pernas feias.
Segundo ele, muitos poucos ingleses tinham as pernas bonitas, um problema qualquer com os joelhos. Mas, na Índia, havia muitas pernas bonitas. E pernas à mostra por todo o lado, como Morgan teria a oportunidade de ver. Havia muito mais pele à vista na Índia do que em Inglaterra; eram os hábitos de lá." (p. 15)
"[Paris] tornou-se um enorme cenário para o seu pequeno e radioso espetáculo. Era a primeira vez que viviam juntos naquela intimidade contínua, sem outros amigos ou familiares por perto. Talvez, pensou Morgan, fosse assim um casamento: uma espécie de completude entre duas pessoas, como sombras coloridas bloqueando o resto do mundo. Seria capaz de viver com Masood daquela maneira, pensou, numa cidade desconhecida, sem nunca se sentir aborrecido ou infeliz.
(...)
Tudo isto atravessara o espírito de Morgan num turbilhão incoerente, enquanto Masood se voltava finalmente e bocejava, despertando. A consciência do amor era importante, mas também parecia improvável. Eram demasiado parecidos, encaixavam demasiado bem juntos para que o amor acontecesse. A definição do amor é a impossibilidade, o desejo de atravessar uma barreira intransponível.
Então, seria qualquer outra coisa, uma ternura confundida, uma proximidade fraternal. Voltou a pôr a sua máscara social." (pp. 39-40, 42-43)
"Ao longo dos meses que se seguiram, sonhou com Mohammed quase todas as noites. Talvez lhe ocupasse todas as horas de sono porque tinha sido banido das que passava acordado. Morgan não podia falar dele a ninguém, exceto a quem – como Florence Barger ou Goldie – o havia conhecido apenas à distância. Havia também algo de humilhante nas demonstrações de dor por uma relação que ninguém testemunhara. Não, aquele era um sofrimento privado, tal como a luxúria ou a literatura, que vivia sobretudo nos seus sonhos.
(…)
No início, sentira-se como um grão de pó à procura de outro grão de pó – era assim que via a morte. Mas à medida que os meses foram passando, as emoções mais profundas vieram à superfície. Morgan não estava obcecado por Mohammed, mas sim oprimido por ele: sentia uma dor constante dentro de si." (pp. 287-288)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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