O texto desta semana recai sobre o mais recente romance de Julieta Monginho (Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2008) "Os Filhos de K." publicado pela Teodolito.
Trata-se de um livro com uma estrutura original, contada a três vozes (Carminho, Francisco e Carlito) reservando espaço ao leitor que tecerá os fios desenrolados pelos outros narradores com o objetivo de um (re)encontro final.
Partindo do acidente de Camarate no dia 5 de dezembro de 1980 que parou por completo o país numa época em que gozava os prazeres da liberdade, fruto da ainda jovem democracia, Carminho, Jacinto, Rui e Francisco, estudantes de Direito, apropriam-se dos acontecimentos com os olhos da juventude de uma época que ambicionava o futuro a seus pés e que ao concluírem as licenciaturas nada haveria que os fizesse parar a justiça. O futuro risonho do país dependia em certa medida do desempenho feliz dos jovens desta geração, detentora de plenos direitos, da liberdade, e conhecedora das leis vigentes.
Quão nobres são os sonhos dos jovens que almejam um futuro auspicioso para si e para o seu país! Sonhos e ideais são o que move o mundo e estes jovens acreditavam na sua capacidade de transformar tudo à sua volta! Eram a esperança renovada da geração anterior amarrada pelos bafos de uma longa ditadura que, durante mais de meio século, pintalgou todo um país de cinzento.
A par deste sentido de justiça e de idealizar (de alguma forma) todo um tecido social, Carminho, uma das personagens centrais do romance, recebe como presente "O Processo", o clássico de Franz Kafka, oferecido pelo seu amigo e colega Francisco, mais tarde rebatizado por Franz. Quem é que saiu ileso com a leitura de "O Processo"? Trata-se de um livro tortuoso, tão ao estilo de Kafka que nos mói e espezinha pelo seu caráter, neste caso em concreto, perverso, tão perverso como o início desse (outro) livro em que Josef K. é preso no dia do seu trigésimo aniversário sem que saiba (nem o próprio) exatamente qual o motivo da acusação. Não deixa de ser curioso que ao longo da obra, Josef K. vai também, aos poucos, inculcando essa mesma culpa que o conduzirá a um processo sem retorno como se tratasse de uma necessidade imensa de expiar essa mesma culpa que, apesar de tudo, desconhece qual é. A dada momento diz Carminho "Quando me deu o livro, Francisco não desejava divertir-me. Queria ensinar-me a vida como viria a ser depois da ingenuidade. ‘O Processo’ era uma espécie de baptismo, um aviso à minha navegação solitária. E um presente para o resto dos meus aniversários." (p. 21) "Hoje, depois de ler tantos livros de Kafka e tanta coisa sobre ele, de reler ‘O Processo’, depois de levar uma vida inteira a invejar Milena Jesenská, assalta-me às vezes um calafrio: e se no dia em que me pediu para ler ‘O Processo’ o Francisco quisesse simplesmente lançar-me um feitiço? Os juízes e os seus retratos num sótão pesadélico? Foi essa a prova que me fez passar? Prova que ele, aliás, já tinha passado, renunciando a todo o poder menos àquele que o livraria do perigo: o pacto com a lei. Ignorar o guarda e aceitar o que está além da porta. A única maneira de escapar à inexorabilidade é submeter-se ao seu encanto. (…) Nenhum processo nasce para a felicidade, isso é garantido. O mais que pode é congelar numa preguiça semelhante à paz." (p. 30)
Estaria Francisco (ou simplesmente Franz) ciente das voltas que a busca incessante pela verdade através do funcionamento do sistema de justiça que se apresenta como um labirinto e por essa razão, através do presente (algo envenenado) de ‘O Processo’ a Carminho constituísse em si mesmo um alerta face ao fracasso iminente?
É precisamente esta ideia de fracasso iminente da justiça que conduz Franz a abandonar o barco em termos profissionais partindo à procura de si mesmo e do sentido de justiça pelo mundo fora.
Por outro lado, é a própria experiência profissional de Carminho que ao fim de vários anos a faz regressar ao perturbador ‘O Processo’. "E pronto, aconteceu, saltei para dentro d’"O Processo", onde Franz me esperava. Bem-vinda, disse-me, talvez com ironia. Continuou a cativar-me pela vida fora, arranjando sempre forma de me escapar. Tal como Francisco, que me escrevia de sítios inimagináveis, para logo a seguir desaparecer do mapa. A busca de Franz tornou-se o enredo da minha vida." (p. 33)
Assim, a busca incessante de Franz equipara-se em certa medida à busca do sentido da justiça, apresentando-se, em ambos os casos, como um verdadeiro labirinto onde "a verdade não se pode ocultar nem exibir." (p. 108)
Esta dialética "O Processo" / procura de Franz conduz Carminho à tomada de consciência de que seria ela própria Josef K., em que "o destinatário da ameaça, no livro, confundia-se" com a própria Carminho. (p. 109)
E até que ponto esta procura de Franz, vulgo identificação com Josef K., não torna também cada leitor num Josef K.? Não seremos todos também Josef K.,de uma forma ou de outra?
De que forma é que os sucessivos périplos de Carminho por vários pontos do globo à procura de Franz não tem que ver com a busca e a compreensão de si própria num mundo que se apresenta em si mesmo como um labirinto?
Conseguirá Carminho (re)encontrar Franz em locais tão distantes e tão diferentes como Trogir, Berlim, Nápoles ou até Luanda? Conseguirá Carminho encontrar Franz através do olhar daqueles que conheceram Franz? Terão essas pessoas os olhos de Franz? Serão esses a descendência de Franz e daí Carminho encontrar Franz em cada vida à sua volta?
São inúmeras as questões que podem ser levantadas em "Os Filhos de K.", tantas quantas quisermos e em que direções pretendemos, mas são essencialmente as questões de teor ético e ontológico as que mais me impressionaram na obra. A dialética entre a consciência do eu e o sentido de dever através do cumprimento da justiça que tantas vezes se apresenta num misto de "é-não é" ocupa uma parte significativa da obra. "Acendemos candeias, premimos furiosos botões, calcorreamos séculos, engolimos em seco, damos o peito aos impropérios e, no final, não há outro remédio senão satisfazermo-nos com uma centelha aqui, outra acolá. (…) A distância entre o que fomos ao longo dessa caminhada (…) e o que pudemos vislumbrar no final é imensa e raquítica." (p. 108)
Num ritmo próprio e deveras peculiar, "Os Filhos de K." é um livro que para além das questões que levanta, permite-nos, em certa medida, viajar no tempo, regressando assim ao início dos anos 80 em que a liberdade ainda era entendida como uma conquista que então se saboreava a cada momento e movimento, numa Lisboa que hoje já pouco se encontra ou reconhece e cujos sonhos quase rebentavam como os balões das crianças como que a pretenderem dizer "Acordem!".
Texto da autoria de Jorge Navarro
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