João Reis é um dos nomes que se tem aos poucos afirmado no contexto da tradução para língua portuguesa de obras de referência de vários países do norte da Europa.
Além da sua faceta como tradutor, João Reis apresentou-se também aos leitores portugueses na qualidade de escritor, primeiro com "Os Quatro Pontos Corporais" (2014) e "O Falhado" (2015), publicados em formato e-book através da Coolbooks (Porto Editora), num registo menos sério, mas sempre bem-disposto, por vezes em tom mais brejeiro, cuja finalidade é divertir o leitor, sem, no entanto, deixar de associar os personagens principais das suas narrativas à ideia de um destino que se cumpre ao qual não se pode fugir.
A mais recente aposta de João Reis no âmbito da escrita chegou às livrarias no início de junho com a publicação de "A Noiva do Tradutor" (Companhia das Ilhas) cujo resultado afasta-se completamente do registo anteriormente publicado, agora mais sério, eloquente, melancólico, angustiante, acutilante, reflexivo e até dilacerante na forma como o personagem principal não só se relaciona com as pessoas à sua volta, mas também na forma como nos relacionamos com esse mesmo personagem.
Sem referência a um espaço exato onde decorre a narrativa, a mesma apresenta traços que refletem em certa medida as cidades do norte da Europa, mas também há momentos em que vislumbramos o personagem principal, o tradutor, a deambular por ruas de uma Lisboa, por exemplo. Quanto ao período em que decorre a narrativa que não ultrapassa as 48 horas, a mesma poderá situar-se algum tempo após a 1ª Guerra Mundial na sequência de algumas descrições.
João Reis conseguiu transpor para "A Noiva do Tradutor" toda uma herança patente na literatura nórdica da qual não só traduz, mas também na qualidade de leitor com propriedade que se reflete invariavelmente na sua escrita. A par desta característica, o (agora) autor também articula a herança acima indicada com o modo de ser português tão bem captado na sua essência, bem visível através dos diálogos tidos entre o tradutor e os demais personagens. As situações comezinhas e até mesquinhas que tão bem os portugueses transpõem em modo de discurso direto têm aqui um impacto deveras negativo nomeadamente na forma como o tradutor não só não se consegue articular com as demais pessoas à sua volta porque, acima de tudo, não se identifica minimamente com elas, desprezando a sociedade no seu todo e em absoluto.
À medida que mergulhamos na narrativa, rapidamente somos absorvidos por longos parágrafos, vertiginosos, cuja cadência das palavras e das frases reflete os pensamentos do tradutor que, apresentando-se tensos e, por vezes, entrecortados, são no fundo a forma como também as ideias e os pensamentos nos vêm à mente.
Passado o primeiro capítulo, o leitor já está mergulhado numa encruzilhada da qual não pretende sair ainda que preveja que as deambulações do tradutor o conduzam a um beco sem saída face ao seu desespero latente.
Na sequência do aspeto acima indicado, João Reis apresenta-nos um tradutor que para quem leu o clássico do norueguês Knut Hamsun "Fome" irá certamente fazer algumas associações, nomeadamente o facto de nunca sabermos o nome nem de um nem de outro, porém, este tradutor que também deambula numa cidade que se apresenta como um híbrido de cidade nórdica e mediterrânica em simultâneo, também sente fome, mas sem apetite porque a sociedade lhe tira o apetite de viver ao contrário do personagem de "Fome" que passa fome porque não tem dinheiro para se alimentar ao ponto de sentir uma fome que rói e corrói o estômago e o espírito.
Compreensivelmente, o destino de ambos os personagens não é muito diferente. As deambulações pela cidade em busca de emprego, no caso específico do tradutor, enreda-nos em certa medida no mundo das quezílias editoriais que já vêm de outros tempos, dando-nos uma ideia das difíceis relações (por vezes) entre vários editores, a sua relação com os tradutores e os tradutores entre si que se digladiam na esperança de lhes ser proposto um novo trabalho, uma nova tradução.
Há ainda a salientar o elemento feminino em "A Noiva do Tradutor" fazendo jus a este romance de João Reis. O tradutor vê a sua noiva partir num navio, mas ilude-se com o seu regresso. Helena abandona-o, mas este tudo faz para garantir que regresse em breve ou então que ele próprio abandone a cidade para se lhe juntar mais tarde. Mas o tradutor sabe e não sabe ao mesmo tempo que tal não é possível enquanto deambula pela cidade, talvez como uma forma de encontrar o seu equilíbrio, no fundo a sua sobrevivência, que não podendo contar com a sociedade, sabe que Helena é e será o seu porto de abrigo. "O meu cepticismo vence-me sempre, deixo a esperança morrer uma e outra vez, mantendo-a, ao mesmo tempo, viva, parece impossível, mas faço-o, não sei como (…). (p. 83)
Se "A Noiva do Tradutor" tem muitos pontos em comum com "Fome" de Knut Hamsun, há também uma ligação muito forte e bem conseguida à obra mais emblemática do escritor alemão Patrick Süskind "O Perfume". Dificilmente o leitor mergulha em "A Noiva do Tradutor" sem se recordar do primeiro capítulo de "O Perfume", pejado e intenso de odores nauseabundos que refletem não só a sociedade em si, mas a forma como a mesma funciona. São inúmeras as passagens de "A Noiva do Tradutor" que fazem alusão aos cheiros nauseabundos, ao esterco da cidade e das pessoas, em suma, da sociedade que, na verdade, está morta e putrefacta. "(…) Cheira-me a urina, a brisa traz as recordações que as pessoas deixam junto aos edifícios, nem a chuva limpa por completo estes vestígios, algumas mulheres vendem peixe no passeio, gritam a alto e bom som, quase me ensurdecem ao passar por elas, nem o cheiro a peixe tapa a fragância a urina, fecho bem a boca para não engolir os odores desta cidade, sim, é mesmo um monte de esterco, quem aqui fica muito tempo acaba por apodrecer, estamos vivos por fora mas mortos por dentro, completamente putrefactos, melhor seria se todos nos uníssemos e nos lançássemos ao rio, seríamos arrastados até ao mar, perder-nos-íamos no seu fundo, livraríamos o mundo de tamanhas aberrações, destruímos tudo, somos parasitas (…)." (p. 65)
A loucura ou a esquizofrenia tomam gradualmente conta do tradutor à medida que este deixa de conseguir vislumbrar a esperança no mundo que o rodeia através da bondade existente entre os homens deixando-se arrastar para um poço sem fundo, muito ao estilo kafkiano porque o mote é mesmo sofrer porque tem de se sofrer havendo uma única forma de expiar esse mesmo sofrimento para alcançar a alegria eterna até porque "Talvez sejamos mesmo um nada neste mundo, não sei se sonho ou existo, a estrumeira arde e seremos todos engolidos num mar de lodo e conspurcação, a vida é grotesca, não sei porque me agarro a ela (…)." (p. 83)
"O cheiro a queimado regressa, sai-lhe da boca um vapor sulfuroso, todo o esterco é remexido por uma poderosa manápula, uma garra criadora agita o mundo e os homens cambaleiam, tentam erguer-se, o vento arrasta os gritos, ah!, todos somos consumidos pelas chamas, um homem não volta atrás, é pena, sim, uma grande tristeza, mas foram tomadas decisões, o vento sopra imperturbável, tudo se resolve como convém." (p. 103)
"A Noiva do Tradutor" apresenta-se como um pequeno grande livro que traz consigo uma lufada de ar fresco no que respeita ao panorama editorial português do momento, afirmando-se como uma excelente proposta de leitura que dificilmente se esquecerá.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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