Quem convive de perto com escritores reconhece neles esse traço canibal de que falo. Quando se deixam ficar calados, como se fossem só olhos e ouvidos, e absorvem tudo quanto está à sua volta. Um timbre de voz que acompanha a mentira, o gesto de afastar a franja da testa, uma expressão de indiferença que se faz com a mão, como quem sacode uma mosca, o olhar da gula, o silêncio que acompanha a inveja, o toque das unhas no tampo da mesa, a exuberância do riso onde se esconde o primeiro ciúme, acabado de surgir. Em casos piores, é a própria história dos outros que engolem e ruminam ao longo de anos, misturando-a sem critério com coisas passadas com as empregadas da casa, ou ouvidas no metro. A arte do escritor, a existir, está nessa mistura que ele faz, de forma a tornar irreconhecível e anónimo aquilo que vai debicando aos outros, tudo envolvido numa ética onde o questionamento prepondera sobre a regra. Mary Shelley, que teve uma vida muito desregrada em amantes e em dívidas, retrata bem esse tipo de processo criativo na forma de um monstro feito a partir de bocados de gente falecida. Uma ideia que aflorava a genialidade, pelo menos na perspetiva do seu criador, Victor Frankenstein, um jovem cheio de cultura e carregado de boas intenções, e por isso mesmo muito propenso ao desastre. Morre extenuado e pesado por muitas angústias, depois da criatura ter matado todos quantos lhe eram queridos.
Eu nunca tive grande convívio com escritores, até ao dia em que me tornei um. Perdoe-se-me o pretensiosismo, mas não sei em que momento, ao certo, se deixa de ser alguém que escreve livros e se passa a ser escritor. Seja lá o que for, a verdade é que vou dando por mim, não poucas vezes, a fazer de conta que não estou presente enquanto ouço as conversas dos outros, um pouco como fazem os cães quando fingem que estão a dormir. São capazes de estar a ressonar, mas abanam o rabo se nos ouvem a falar deles. Eu, poucas vezes digo que uma história que me contam é interessante, e mostro-me alheado se me dizem “a minha vida dava um livro”. A maior parte das vezes não dá, mas nem por isso se deita fora. Dez anos depois, pode vir a ser preciosa. Isto faz com que tenha a memória cheia de coisas assim, sem que me entregue ao esforço de as catalogar, ao ponto de não saber já se as li em livros, se as vi em filmes, ou se me foram contadas em confidência. Talvez um dia tudo isso se misture na medida certa, e apareça nas páginas de um livro.
As pessoas não levam a mal esses aproveitamentos de fraca honestidade. Pelo contrário, à segunda ou terceira pergunta que fazem, estão a querer saber se tive conhecimento daquelas histórias através da minha profissão, ou se são ajustes de contas com gente da minha família. Como se isso as deixasse mais sossegadas, por haver coisas que, a serem inventadas, seriam reveladoras de uma mente cheia de problemas e de assuntos mal resolvidos. Hoje gosta-se da história “inspirada em factos reais”. Creio que sempre foi assim, mas antes escondia-se esse aspecto e era uma vergonha quando se descobria. A “ficção-falsa” deixou de ser uma impostura para se tornar num género literário com grande saída. O facto do escritor ser jornalista, antigo polícia ou alguém que anda pelos tribunais, garante que tudo o que está escrito é verdadeiro, sendo isso meio caminho andado para o sucesso. Dizem-me, porque eu até agora ainda não tive essa confirmação. Seguindo a mesma tendência, os romances de época são escrutinados como se fossem teses de mestrado, sendo o mais ligeiro desvio à verdade interpretado como grave falha de rigor. Dá a ideia que o contacto com a realidade (presente ou passada) passou a ser feito através da leitura de romances. Ou, por outras palavras, o real tornou-se lúdico – o que não era novidade nenhuma desde os tempos em que decidiram fechar pessoas dentro duma casa, para filmá-las enquanto cozinham, tomam banho e se espreguiçam em fato de treino, transmitindo depois tudo em horário nobre.
O fenómeno, no que toca à literatura, cai que nem uma luva ao escritor, que se vê assim poupado a inventar histórias e personagens, sempre no receio de que nada daquilo pareça real. A verosimilhança, que é um dos muitos alçapões da escrita, deixou de ser inquietante para quem faz disto vida. E o canibal, que antes se fingia de morto enquanto se alimentava de histórias e gestos alheios, passeia-se agora a descoberto e assina autógrafos, sujeito apenas à lei de Lavoisier – um homem indubitavelmente inteligente, que se tornou conhecido por via de uma ideia pertencente a Anaxágora de Clazómenas. Morreu guilhotinado, depois de um período de relativa glória e reconhecimento público.
Quanto a mim, acabado de chegar, hesito.
João Felgar
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