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quinta-feira, 16 de abril de 2015

A escolha do Jorge: O Diário de Mary Berg

"O Diário de Mary Berg" foi publicado inicialmente em 1945, aproximadamente um ano depois de a autora ter chegado aos EUA após ter sobrevivido à experiência de três longos anos no gueto de Varsóvia, seguidos de seis meses na prisão Pawiak nas proximidades do gueto e ainda outros seis meses num campo de internamento, em Vittel (França) a aguardar troca de prisioneiros para então poder viajar em segurança rumo aos EUA.
O livro chega-nos agora às livrarias na sequência da comemoração dos 70 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz sendo, pois, mais uma preciosidade que ficamos a conhecer e que de alguma forma nos alarga o conhecimento no que respeita à construção do gueto de Varsóvia assim como ao seu funcionamento.
Contado na primeira pessoa, Mary Berg é filha de uma judia com nacionalidade norte-americana e de pai igualmente judeu e comerciante de obras de arte. A família vivia confortavelmente em Lodz e acabou por se refugiar em Varsóvia no seguimento das violentas perseguições aos judeus. Iludidos com a ideia de que na capital polaca as condições de vida seriam melhores para esta comunidade, muitos judeus migraram em número significativo para Varsóvia sendo posteriormente integrados no gueto que foi edificado acolhendo 400 000 judeus que viviam com inúmeras dificuldades.
Desde a sua entrada no primeiro dia de construção do gueto de Varsóvia em 1940, Mary Berg recolhia informação vária sobre a vida dos judeus no gueto, as condições de higiene, o difícil acesso à alimentação, os maus tratos por parte dos alemães, as doenças frequentes como o tifo e as mortes frequentes cujo número aumentava à medida que as condições de vida do gueto se agravavam.
A par das más condições de vida dos judeus do gueto, Mary Berg elucida-nos também que graças ao elevado nível cultural dos judeus, desde cedo foram constituídas escolas clandestinas incluindo escolas religiosas, muitos grupos de teatro e associações culturais proliferaram no gueto durante pelo menos um ano, restaurantes e cafés com concertos ao vivo, a referência à moda ditada pelas judias com posses que impunham as cores das épocas no vestir e no calçar, os grupos de apoio aos necessitados, nomeadamente aqueles que mendigavam por uma côdea de pão e um abrigo.
O número de casamentos judeus aumentou nos primeiros meses de existência do gueto ainda que proibidos pelos nazis, embora a solução tenha passado por emitir as respectivas certidões com data anterior à implementação da lei.
A necessidade de companhia e afeto por parte das pessoas contribuiu igualmente para a existência de relacionamentos atípicos entre pessoas com uma grande diferença de idades na medida em que se tentava a todo o custo lutar contra a solidão e, consequentemente, uma eventual morte devastada pela doença e tortura na sequência das mortes dos demais elementos da família.
As frequentes perseguições e agressividade face aos judeus contribuiu para a integração do "Pequeno Gueto" no "Grande Gueto" obrigando a uma nova mudança de residência, cada vez mais difícil, por parte dos judeus afetos àquelas ruas (bairro) de Varsóvia que se tornavam cada vez mais apertadas à medida que continuava a aumentar o número de judeus que ou por iniciativa ou por imposição se dirigiram para Varsóvia.
À medida que o gueto de Varsóvia caminhava para a asfixia em termos de habitantes, os nazis adotaram uma atitude ainda mais agressiva passando a enviar milhares de judeus em vagões para o campo de concentração de Treblinka, sobretudo quando se impôs a "solução final para a questão judaica" que levou milhões de judeus para campos de concentração e de morte até ao final da guerra.
Os judeus que eram deportados para o campo de concentração de Treblinka partiam da "Umschlagplatz", um ponto ferroviário criado propositadamente com esse objetivo e que se situava nas imediações do gueto de Varsóvia.
Graças ao facto de a mãe de Mary Berg beneficiar de nacionalidade americana, toda a família acabou por ser transferida para a prisão Pawiak que se situava igualmente nas imediações do gueto, aguardando por uma troca eventual de prisioneiros de guerra alemães por judeus com várias nacionalidades várias de todo o continente americano. Após três anos de experiência no gueto de Varsóvia, a família de Mary Berg passou seis meses naquela prisão que se traduziram em seis meses de fome profunda, entre outros maus tratos a que estavam sujeitos.
É precisamente durante este período de prisão que se intensificam os ataques e consequentes massacres aos judeus do gueto, testemunhados pelos gritos e banhos de sangue que podiam ser testemunhados parcialmente da prisão de Pawiak.
As deportações aumentaram em massa e o assassinato de judeus sem dó nem piedade intensificaram-se fazendo jus ao desejo de extermínio do povo judeu por parte dos nazis.
Mary Berg só terá verdadeiramente consciência desta realidade quando foi transferida para Vittel, em França, ficando "internada" a aguardar finalmente a autorização para sair definitivamente da Europa. É durante esse internamento que Mary reencontra uma amiga do gueto de Varsóvia que lhe relata os últimos acontecimentos tortuosos por parte dos nazis aos judeus na sequência da resistência armada por parte destes tendo ficado o acontecimento conhecido por Insurreição do gueto de Varsóvia que teve lugar em 1943.
No início de março de 1944, Mary Berg e a sua família embarcaram no navio «Gripsholm» a partir de Lisboa rumo aos EUA chegando a Nova Iorque a 15 de março.
"O Diário de Mary Berg" mostra-nos o outro lado da guerra, na perspetiva de uma adolescente judia com uma capacidade (quase) inata para a descrição dos factos deixando ao leitor a responsabilidade em ajuizar sobre os vários acontecimentos descritos. Mary Berg descreve-nos uma guerra no contexto da 2ª Guerra Mundial, uma "guerra" pela sobrevivência que se traduziu numa dolorosa resistência e resiliência por parte dos judeus em relação ao jugo alemão.


Excertos:
"5 de fevereiro de 1941
(…)
A cada dia que passa há cada vez mais «sonhadores de pão» nas ruas do gueto. Os olhos estão velados por uma névoa que é de outro mundo… Sentam-se, em geral, no outro lado da rua diante das montras das lojas que vendem comida, mas os seus olhos já não veem o pão que existe atrás do vidro, que talvez lhes pareça um paraíso distante e inacessível." (p. 81)

"Agosto de 1942

Por trás dos portões de Pawiak vivemos também todo o terror que campeia no gueto. Não temos conseguido dormir nas últimas noites. O barulho dos tiros e dos gritos de desespero enlouquece-nos. Tenho de reunir todas as minhas forças para escrever estas notas. Já perdi a conta dos dias e nem sei que dia é hoje. Mas que importa isso? Estamos aqui numa pequena ilha, no meio de um oceano de sangue. Todo o gueto [de Varsóvia] se afunda em sangue. Vemos literalmente sangue humano derramado de fresco, podemos cheirá-lo. O mundo exterior saberá alguma coisa do que aqui se passa? Porque não vem ninguém em nossa ajuda? Não consigo continuar a viver; a minha força esvaiu-se. Quanto tempo teremos de aqui ficar a assistir a tudo isto?
Há alguns dias foi levado de Pawiak um grupo de cidadãos de países neutros. Só que os alemães não devem tê-los conseguido usar para uma das trocas. Da minha janela, avistei vários camiões cheios de pessoas e tentei ver, entre elas, caras que conhecesse. Passado pouco tempo, o guarda da prisão [de Pawiak] veio ter connosco, ofegante, e disse-nos que os cidadãos de países europeus neutros que eram judeus foram levados para o ‘Umschlagplatz’ para serem deportados." (p. 232)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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