Gosto de ler autores portugueses. Porque me surpreendem pela positiva cada vez mais.
David Machado jå me foi apresentado com o seu "Índice Médio de Felicidade". Sei que imaginação nao lhe falta! No entanto, creio que este livro superou ainda mais as minhas espectativas! Gostei que esta história me fosse apresentada por dois narradores completamente diferentes, um narrador por detrás de outro, por assim dizer.
Umas vezes é Valdemar a fazer esse papel. Conta-nos a sua história, tão profundamente ligada à história de seu avô. É um adolescente gordo e grande, apaixonado por Alice, uma vizinha e amiga que sofre de uma anorexia crescente. Valdemar toma como suas as dores do avô e vendo-o afastar-se para um mundo cada vez mais longe e que só a ele pertence, tenta, a todo o custo, ajudá-lo a não se perder nas memórias tão cruéis que transporta consigo. Nicolau Manuel, herói desventurado de uma época sombria do nosso país, é um homem marcado pelas inúmeras torturas e prisões que lhe vestiram a vida, e tem no seu neto um aliado fortíssimo.
E, se dúvidas houvesse em relação à capacidade quase sobre-humana deste ingénuo avô-herói, David Machado apresenta-nos outro narrador (ele próprio?) que questiona, que coloca hipóteses, dando-nos as respostas às dúvidas que vamos colocando interiormente, conduzindo-nos e guiando-nos na história.
Valdemar tenta recuperar as memórias do avô e, para que fiquem nas memórias de outros, escreve a sua história. História que se cruza com a História do nosso país e que é fruto de muitos desencontros e mal entendidos. História que retrata magnificamente a história de tantos portugueses que se viram, sem perceber bem porquê, dentro de celas minúsculas e sob tortura. Ao escrever as memórias do avô, Valdemar sente necessidade de utilizar na sua escrita, o mesmo utensílio que era usado antes da revolução dos cravos, a censura. E vai riscando, riscando, pedaços da história que ele próprio escreve. Não se espantem, por isso, ao encontrarem frases cortadas e riscadas. A compreensão do texto não sofre com essa censura, sendo perceptível tudo o que Valdemar nos quer contar. O mesmo não se pode dizer da vida de seu avô! A censura limita em tudo a vida de Nicolau Manuel. Tanto que chegamos a dúvidar que alguém, alguma vez, conseguisse suportar tamanha dor... Mas, Valdemar escreve e com isso perpectua a história do avô, tornando-a verídica.
Recomendo muitíssimo!
Terminado em 28 de Setembro de 2014
Estrelas: 6*
Sinopse
No dia em que se ia casar, Nicolau Manuel foi levado pela Guarda para um interrogatório e já não voltou. Viveu, assim, quase toda a vida na urgência de contar a verdade a Graça dos Penedo, a noiva que mais tarde lhe seria arrebatada pelo alfaiate que lhe fizera o fato do casamento. Porém, sempre que se abria uma possibilidade, uma ameaça desviava-o dramaticamente do seu destino - e agora, meio século volvido, está velho de mais para querer mudar as coisas, gastando os dias com telenovelas. De tanto ter ouvido ao avô a sua história rocambolesca, Valdemar - um rapaz violento e obeso apaixonado pela vizinha anoréctica - não desistiu, mesmo assim, de fazer justiça por ele. E, ao encontrar casualmente a notícia da morte do alfaiate, sabe que chegou a hora de ir falar com a viúva: até porque essa será a única forma de resgatar Nicolau Manuel da modorra em que se deixou afundar.
Alternando a narrativa dos sucessivos infortúnios de Nicolau Manuel - que é também a história de Portugal sob a ditadura, com os seus enganos, perseguições e injustiças - com a de um adolescente que mantém um diário com numerosas passagens rasuradas como instrumento de luta contra o mundo -, Deixem Falar as Pedras é um romance maduro e fascinante sobre a transmissão das memórias de geração em geração, nunca isenta de cortes e acrescentos que fazem da verdade não o que aconteceu, mas o que recordamos.
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