Menina Júlia é uma peça de teatro do sueco August Strindberg (1849-1912) publicada em 1888 e à semelhança de outras obras do autor, a mulher desempenha um papel crucial, nomeadamente no que respeita à sua emancipação sendo colocada numa posição de destaque social que a permite, de alguma forma, levar avante o poder de decisão. Aqui, a Menina Júlia é a filha de um conde e que na noite de S. João, seduz João, um dos empregados de seu pai que é noivo de Cristina, a cozinheira da família. João é levado pelo jogo não inocente da Menina Júlia que, em ambos os casos, não medem as consequências dos seus atos perante a sociedade na medida em que há nítida e claramente uma oposição no que respeita ao grupo social a que cada um pertence.
A história que se desenrola ao longo daquela noite de solstício terá um final trágico muito semelhante ao das tragédias gregas tendo em conta o cunho moral que a envolve.
August Strindberg ainda que defensor da igualdade das mulheres perante os homens, mostra-nos que nem sempre as escolhas das mulheres são as mais acertadas correndo o sério risco de ficar com a cabeça a prémio na medida em que, neste caso concreto, a Menina Júlia, teve de optar entre o julgamento por parte da sociedade e o suicídio. Moral da história: Um simples ato inconsequente poderá originar um conflito ético sem precedentes.
Excertos:
" JOÃO Pega de criados, p*** de lacaios, cala-me essa boca e põe-te a andar daqui! És tu quem me vem ensinar a não ser ordinário? Ninguém da minha condição alguma vez foi tão ordinário como tu foste esta noite. Julgas que alguma rapariga do pessoal seria capaz de se atirar a um homem dessa maneira? Viste alguma vez uma rapariga da minha classe atirar-se assim a um homem? Eu nunca vi. Assim, só os animais e as prostitutas.
JÚLIA (aniquilada) Continua. Bate-me, espezinha-me, que é o que eu mereço. Sou miserável. Mas acode-me! Se há um caminho para sair disto tudo, salva-me.
JOÃO (maior gentileza) Eu não nego a minha parte na honra de a ter seduzido, mas julga que alguém no meu lugar teria arranjado coragem para avançar para si sem sentir que estava a ser chamado? Eu ainda estou espantado…
JÚLIA E orgulhoso.
JOÃO Porque não? Embora deva admitir que uma vitória tão fácil não é razão para perder a cabeça.
JÚLIA Continue a bater-me.
JOÃO (levantando-se) Não. E perdoe-me por tudo o que lhe disse. Nunca bati em quem não se podia defender, sobretudo numa mulher. Não posso negar que estou feliz por ter descoberto que afinal o que nos deslumbrava cá em baixo era só um reflexo da lua e que o dorso do falcão é cinzento também, tão cinzento como o pó que o cobre dessa cor suave, e que as unhas polidas podem encher-se de negro, e que o lenço perfumado às vezes está sujo! O que me custa é ter de me aperceber de que aquilo que eu procurava atingir não é mais elevado, nem mais sólido. Custa-me vê-la caída mais baixo que a sua cozinheira, tal como me custa quando vejo as flores do outono desfeitas pela chuva, transformada em lama.
JÚLIA Está a falar comigo como se fosse já meu superior.
JOÃO E sou. Eu posso fazer de si uma condessa, mas você sabe que não me pode fazer conde.
JÚLIA Mas eu sou filha de um conde, coisa que você nunca poderá ser.
JOÃO Mas poderei ser pai de condes, se…
JÚLIA Você é um ladrão. Eu não sou.
JOÃO Há coisas piores que ser ladrão – muito abaixo disso. Ao serviço de uma casa, eu vejo-me a mim próprio como membro da família, como uma criança da casa, e ninguém vai falar de roubo se a criança colher um morango de um arbusto carregado de frutos. (A sua paixão ressurge) Menina Júlia, você é uma mulher extraordinária, demasiado generosa para um homem como eu. Foi atrás de uma loucura qualquer e agora para remediar o seu erro tenta convencer-se de que me ama. Mas não ama, sente-se atraída pelo meu corpo, o que apenas quer dizer que esse amor não é melhor do que o meu. Eu é que não me sentiria bem a ser visto como um animal e a nunca ganhar o seu amor.
JÚLIA Tem a certeza disso?"
In Menina Júlia de August Strindberg, pp. 50-52
Texto da autoria de Jorge Navarro
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