O artigo desta semana incide numa das mais recentes obras publicadas pela Cavalo de Ferro Editores apresentando-se num registo deveras intimista vindo de uma das vozes mais conhecidas do panorama nacional no tocante à defesa da morte medicamente assistida e do testamento vital. Referimo-nos a Laura Ferreira dos Santos (n. 1959), professora universitária na área da Filosofia.
"Dizer Adeus" apresenta-se num registo totalmente diferente daquilo a que estamos habituados, a ver pelo tom intimista com que nos apresenta o livro nas primeiras páginas.
A obra que agora chegou às livrarias começou a ser escrita após o falecimento inesperado do único irmão da autora por quem sentia um amor incomensurável dado que sempre mantiveram uma relação fraterna muito forte.
Escrito em estilo de diário, "Dizer Adeus" conta-nos muitos desabafos, desencantos, frustrações, alegrias, desejos e muitas interrogações utilizando o discurso direto como se se tratasse de uma carta dirigida ao irmão que entretanto partiu.
Sendo manifestamente católica praticante, Laura Ferreira dos Santos nunca vacila perante a mágoa da perda sentida no que respeita à sua fé. Procura muitas respostas na Igreja Católica até mesmo ao nível de sentir que sendo uma sobrevivente de dois cancros que deixaram algumas sequelas, seria injusto ter sido o único irmão a partir primeiro do que ela própria. São os mistérios insondáveis que a cada um caberá desvendar, o sentido da vida, em última instância.
Mas da parte da Igreja, a autora sente que face à dor imensa da perda de um ente querido, são muito poucos os padres capazes de dar conforto, mesmo espiritual, reduzindo a relação padre-crente a um conjunto de rituais cumprindo o protocolo estipulado como se se tratasse da condição em si mesma para o crente chegar a Deus. "Perante a tua morte, não culpei deus e busquei apoio junto das pessoas que lhe deveriam estar inteiramente dedicadas. Não resultou. Também disso não culpo deus, embora culpe uma estrutura da Igreja que está mais preparada para realizar cerimónias regidas por protocolo em torno dos mortos do que para ter compaixão pelos enlutados." (p. 113)
Questionando sucessivamente a Igreja ao ponto de demonstrar profunda frustração na instituição com os crentes em relação a temas sensíveis como a dor da perda, a autora mesmo sendo religiosa sente uma necessidade em afirmar que no seu funeral pretende uma cerimónia laica e não religiosa. "Mesmo sendo católica, quero um funeral laico se esse for o único modo de ter um pensamento biográfico, que deve ser o mais apreciado por um verdadeiro deus de amor. Que alguém reze por mim orações cristãs, mas não pretendo que tenham de ser ditas por um padre ou uma pessoa católica. Se essas orações e textos evangélicos - sobretudo os de S. João - forem ditos por uma pessoa ateia que os respeite, estará tudo bem. Melhor isso do que um discurso de protocolo junto do cadáver da «serva Laura». E ponham música e leiam poesia, também tua, e alguns textos meus que possuam alguma beleza. O que eu agora gostaria de fazer por ti e já não consigo." (pp. 67-68)
Em paralelo com a Igreja, a autora faz igualmente a ponte com os médicos que no ponto específico e central trazida a livro, também se trata de uma classe profissional que mais depressa empurra os pacientes para questões técnicas e tratamentos invasivos que tantas vezes debilitam ainda mais a pessoa, física e emocionalmente, em relação ao seu padecimento. Segundo a autora, também os médicos necessitariam de ler romances de referência que os levasse a compreender a complexidade humana estando desse modo melhor preparados para lidar com este tipo de questões. "[os médicos] deviam ter sido obrigados a incluir na sua formação o estudo de obras de literatura, de filosofia e de psicanálise, tudo o que os ajudasse a saber mais sobre a complexidade humana, em especial sobre a complexidade do sofrimento humano e o modo diverso como cada um de nós se relaciona com o morrer e a morte. A morte vence sempre. A prazo, sem dúvida. Mas, muitas vezes, também vence antes do suposto fim do prazo. Há que saber olhá-la nos olhos e dialogar com ela. Tentar evitá-la quando está destinada a vencer é uma falta de bom senso que aumenta o sofrimento de quem está prestes a tê-la por destino." (pp. 99-100)
Neste ponto em questão, Laura Ferreira dos Santos avança com algumas das suas ideias já conhecida sobre a eutanásia que integram outras obras de caráter científico, sem, no entanto, as desenvolver dado que o contexto também aqui é outro.
Deste modo, a autora em "Dizer Adeus" consegue fazer a ponte de um modo notável entre áreas aparentemente distintas, mas com forte relação entre si, como a Religião, a Ciência e a Filosofia sendo, pois, unificadas através dos sentimentos fortes que nos ligam a todos aqueles por quem temos apreço. A consciência da dor da perda leva-nos tantas vezes a não saber o que fazer aos sentimentos que temos entre mãos, daí o permanente questionar em "Dizer Adeus".
Laura Ferreira dos Santos conseguiu uma obra notável levantando questões que a todos diz respeito sobretudo ao nível da relação complexa que temos com a morte, assim como as diferentes formas de "Dizer Adeus" àqueles que partiram.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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