Escrever, fazer uma apreciação sobre uma obra de Saramago é uma imensa responsabilidade e desafio. Não por ele ser o Nobel português (mais que merecido), mas porque Saramago escreve incrivelmente bem, nos surpreende pela forma como escreve e pela forma como nos convoca a olhar para a vida, para as coisas do quotidiano, para o comezinho, transformando-o. Acho que essa é uma das dimensões e papel da Literatura. E Saramago é Mestre.
É impossível ficar-se indiferente com Saramago. "Memorial do Convento" é um livro que mete respeito pela subtileza e pela densidade, pela mestria no jogo das palavras e das ideias, pela profundidade do pensamento e da escrita. A pretexto da construção de uma obra monumental que o rei D. João V (O Magnânimo) – o rei-sol português – quis deixar como marca do seu reinado, Saramago faz um retrato da Lisboa caótica do século XVIII; do poder do rei enebriado pelas riquezas do Brasil, da Índia e de África; do clima de suspeição e medo que a Igreja e o Santo Ofício lançam sobre todos e todas que saem dos limites impostos, colocando-lhes o ferrete de heresia ou bruxaria; do povo cuja vida é sofrimento, trabalho, doença e morte, mas que também sabe usar da astúcia e das festas para sobreviver. O grande protagonista deste romance é de facto o Povo. É ele que vai à guerra e fica mutilado, é ele que prepara o palanque e todas as condições para que o rei lance a primeira pedra, é ele que carrega as pedras que hão-de fazer o convento, é ele que, ao lado das juntas de bois, "faz ombros" com eles para carregar os blocos maiores que hão-de ser a glória do rei, é ele que se junta para ver a comitiva real passar. O rei é uma figura menor, está ausente e aparece episodicamente ou para garantir a descendência real ou para satisfazer os seus desejos carnais ou para cumprir as obrigações da sua condição de rei como, por exemplo, os casamentos reais que mais não são que negócios entre as famílias nobres da Europa.
As grandes personagens, e sobre eles/as há tanto a dizer, são Baltazar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas, o padre Bartolomeu de Gusmão (o Voador), Scarlati (o senhor Escarlate) e todos aqueles milhares de operários anónimos que acreditaram que a construção da grande obra em Mafra, que iria durar muitos anos, lhes iria permitir deixar a sua vida de miséria e fome! Só a descrição do que foi ir a Pêro Pinheiro buscar a pedra para a varanda sobre o pórtico da igreja nos dá a dimensão do esforço humano supremo das grandes obras faraónicas construídas a poder de braços e de vidas de muitos milhares de pessoas.
Blimunda e Baltazar elevam-se acima do comum dos mortais; eles encerram em si o amor, a comunhão e o respeito entre duas pessoas que não se anulam antes vivem a sua individualidade e se reforçam. Sendo que Blimunda tem todas as características para ser presa da Inquisição, dados os seus poderes especiais, ela é afinal quem resiste no trio que ousou acreditar que as vontades recolhidas conseguiriam fazer elevar a passarola no ar. Ao espírito inventivo do padre Bartolomeu de Gusmão juntou-se a força da música do cravo de Scarlatti.
Concluindo, ao longo da leitura de "Memorial do Convento" estas foram as palavras que frequentemente me ocorreram: amor, sonho, vontades, superação.
Almerinda Bento
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