É neste contexto de profunda crise económica e social que surgempersonagens como José Pendura Calmas, Gustavo Provisório e Henrique H, o epicentro de toda a história. Os laços que unem estes homens vêm desde os tempos em que viveram na Casa do Vendaval, um orfanato onde foram abandonados pelas suas famílias. Chegada à idade adulta e marcados, cada um, pela força do destino, mantiveram-se ligados muito à conta à criação da sociedade Sustos, Murros e Biqueirada, Lda, que tem como objetivo realizar serviços sujos, negócios pouco claros, limpar o sebo a indivíduos ainda menos sérios que estes amigos sócios e tudo em nome da sobrevivência do dia-a-dia.
Uns euros aqui, outros acolá, a vida nunca se mostrou fácil para estes três amigos, que com o agravamento da crise que está por todos os cantos e recantos da cidade viram-se obrigados a engendrar os esquemas mais subversivos para ao menos não faltar pão para a boca ainda que por vezes, nem isso.
Este “Bordel Português” é uma viagem verdadeiramente alucinante repleta de ritmo e movimento pelos meandros da sociedade portuguesa. As particularidades dos três personagens indicados são apenas uma pequena amostra daquilo que os portugueses se tornaram com o passar do tempo em que a fuga aos impostos e os esquemas estranhos e manhosos que são postos em prática pelas camadas sociais mais baixas são apenas o reflexo da podridão que grassa na classe dominante, a classe política que, no conjunto, transformam Portugal num verdadeiro bordel de corrupção.
O autor, no entanto, vai mais longe na sua ironia como crítica à sociedade. Se por um lado, Henrique H é a figura central deste bordel que é Portugal, por outro, consegue transformar as fraquezas e eventuais limitações do personagem em imagem de marca catapultando-o para as luzes da ribalta ainda que por um período fugaz à semelhança do que acontece nos reality showsque invadiram as nossas televisões na última década. Um dia Henrique H é conhecido em todo o mundo ganhando mundos e fundos e no dia seguinte é enganado, entrando em falência, tornando-se rapidamente um desconhecido para todos. Tal é o preço da fama!
Tudo é fugaz, tudo é relativo e nada é importante, são os vazios com que nos deparamos no dia-a-dia para onde quer que nos voltemos. A crença no ser humano é posta em causa, daí que Henrique H gostaria de conhecer Deus passando a praticar o bem, mas o destino que lhe estava reservado era de tal forma pesado e negro que Deus nunca lhe respondeu. Da mesma forma que conheceu o sucesso, também terminou nu, sem nada e sozinho, em frente à Assembleia da República, a sorrir como que por ironia do destino.
O “Bordel Português” de Nelson Quintino é uma surpresa agradável no âmbito das novas tendências da literatura portuguesa tendo-nos presenteado com um romance atual repleto de ironia. Definitivamente um livro que não vai querer perder!
Primeiras páginas
“Henrique H queria encontrar Deus.
Desempregado em nome coletivo, ex-forcado amador, batoteiro profissional especializado em perder e pagar depois, agente de cobranças difíceis, contrabandista de rebuçados de fruta e chupa-chupas, vendedor de tristezas alheias nas horas vagas, taxista defim de semana sem carta de condução, Henrique pretendia abandonar de uma vez por todas azáfamas da má vida.
Além de especialista em todas as profissões atrás referidas, cuja enumeração suscita por certo o
cansaço do leitor – as atividadesmencionadas nunca causaram, apesar da sua extensão, fadigas ao
profissional em causa -, Henrique era também, como se já não bastasse, um ilustre tradutor de más-línguas, um credenciado amante de literaturas passadas e futuras e um fervoroso apaixonado por poesia e amendoins descascados.
Especializações não lhe faltavam; possui um currículo de fazer inveja e ser um homem tão distinto até o embaraçava.
Um belo dia, porém, depois de consultar o horóscopo e um olho negro, Henrique resolveu mudar de rumo, ressuscitar para o bem e livrar-se do mal.
Henrique queria começar de novo, e a hora da mudança chegara.
Depois de um murro certeiro e de uma crise de intestinos, decidiu que estava na hora de viver longe dos precipícios. Perseguido desde a nascença pelo Diabo, queria livrar-se de todos os demónios e entregar a vida a Deus, mas para isso tinha de o encontrar.” (p. 11)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Plenamente de acordo. Adorei! Tivemos oportunidade de o abordar e foi dos livros que mais me surpreendeu e divertiu.
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