De tantas tão boas leituras que fiz em 2024, tenho muita dificuldade em dizer qual ou quais foram as minhas preferidas, mas “Caderno Proibido”, o último livro que li no passado ano, é certamente dos melhores. Uma verdadeira revelação, um livro com a minha idade, mas que é duma actualidade incrível e no qual me revi, e certamente muitas mulheres que tiverem oportunidade de o ler.
O caderno proibido é uma revolução na vida de Valeria. Mulher italiana de 43 anos, casada há 22, mãe de uma rapariga e um rapaz, empregada num escritório, um dia começa a escrever num caderno de capa preta reflexões sobre si e a sua vida. A escrita no caderno – um diário – vai, pela primeira vez, obrigá-la a questionar tudo: a família, o casamento e, sobretudo, ela própria.
Valeria é uma mulher tradicional, preconceituosa, educada para se apagar nos cuidados com o marido e os filhos, a viver em função dos outros, a gerir um orçamento limitado que a leva a comprar para si só o indispensável, com uma vida social muito limitada, apenas mantém contacto com uma amiga de infância. Invisível, o seu trabalho não é valorizado. Até àquele domingo ameno em que sai para comprar um maço de tabaco para o marido e acaba por ser atraída pela capa preta de um caderno na montra da tabacaria e o compra.
A escrita do diário vai-se prolongar ao longo de seis meses e logo no primeiro dia em que trouxe aquele caderno para casa, nunca mais teve um momento de paz. O romance começa com estas palavras: “Fiz mal em comprar este caderno, mesmo muito mal. Mas agora já é tarde de mais para me lamentar; o mal está feito.” (pág. 7). A viver em função dos outros, descobre que nem consegue encontrar em casa um lugar onde escreva sem a presença da família, nem sequer tem um sítio seguro para esconder o diário “Afinal, não tinha, em toda a casa, uma gaveta, um cantinho que fosse meu” (pág. 8) / “… sonho que gostaria de ter um quarto só para mim.” (pág. 55) / “Repito que precisávamos de mudar de casa porque esta já é muito pequena, mas sinceramente é porque queria ter um quarto para mim.” (pág. 109). E pela primeira vez, deseja estar só, “Agora desejo que saiam para ficar sozinha a escrever” (pág. 9).
Como quando se toma uma decisão difícil, se escolhe um caminho que implique uma mudança corajosa, a pessoa questiona-se, tem dúvidas… Assim é com Valeria que põe em causa o seu direito de escrever o diário; que tem sentimentos de culpa, remorsos por roubar tempo para si sempre que escreve no diário; que se rebela contra o diário e tem vontade de o rasgar. Mas que tem ânsias de verter para o papel as suas inquietações e aquilo que nunca confessou a ninguém nem a si mesma: que se sente escrava da família e da casa; que não sabe o que é o descanso; que nunca teve tempo para ler um livro; que encara a família como um lugar de opressão; que o casamento e o nascimento dos filhos foram os únicos pontos altos da sua vida e que tudo o resto foi insignificante; que embora ache que na sua idade já é tudo tarde de mais, descubra que ainda é possível amar fora do casamento; que para sobreviver precisa de mentir; que um matrimónio exemplar é feito de um contínuo fingimento.
Não se espere deste romance respostas fáceis, nem um final feliz. Sendo uma narrativa que decorre no início dos anos 50, no pós-guerra e sempre com o receio de uma possível guerra futura, considero que não é um romance datado, antes aborda temas e inquietações intemporais: o envelhecimento, a sexualidade, os preconceitos sociais, a família, os conflitos geracionais, a ânsia de liberdade e de felicidade. Valeria, que sempre se habituara ao silêncio e que tinha pudor em confessar ao marido os seus sentimentos, ousa um dia perguntar-lhe se era feliz. Pergunta tão simples, de resposta tão difícil! “– Que pergunta! Pois naturalmente, porque não havia de ser? Os pequenos são bons, são saudáveis… Ricardo há-de fazer uma bela carreira na Argentina. Mirela já trabalha, depois casará. Que mais poderemos desejar, mamã?” (pág. 77).
O caderno proibido abriu a Valeria um caminho de liberdade e de questionamento de que é impossível livrar-se, apesar das amarras que a prendem. Termino com uma das últimas frases deste belo livro, inesquecível: “Todas as mulheres escondem um caderno negro, proibido. E todas têm de o destruir. (pág. 208)
30 de Dezembro de 2024
Almerinda Bento
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