Gosta deste blog? Então siga-me...

Também estamos no Facebook e Twitter

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

“Oração Para Desaparecer” de Socorro Acioli

Sou uma leitora que gosta, maioritariamente, de livros que tenham “o pé no chão”, que nos contem histórias reais ou, se não reais pelo menos verosímeis. Então o que me faz gostar de um livro com uma premissa tão fora do comum? Tão irreal?

“Uma mulher é puxada da terra, viva, num jardim da localidade de Almofala, na fronteira entre Portugal e Espanha. Os únicos traços da sua origem são o sotaque brasileiro e um colar de búzios, mas quem a recebe parece aguardar-lhe há muito a chegada.” Aparecida, nome que lhe é atribuído, surge do nada. Nada se lembra, tudo tem de aprender. É recolhida por um casal e começa a viver uma vida nova sem passado. As marcas que traz no corpo denunciam uma morte violenta. O nada saber angustia-a.

Respondendo à pergunta que fiz no início: A escrita.  Uma escrita que envolve, que encanta, que nos conduz por vias desconhecidas e que faz amar uma história onde uma mulher é desenterrada viva, vinda de, supostamente, terras brasileiras. Uma ressurecta. Uma imaginação prodigiosa, pontas que se vão colando, um puzzle que se vai construindo. 

E, volto à escrita - Tão bonita! Frases em que apetece permanecer. ”Joana gostava de anoitecer na praia.” Pág 156.

Terminado em 31 de Janeiro de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse
Na fronteira entre Portugal e Espanha, ela é desenterrada vida.

Tem sotaque brasileiro e um colar de búzios.

Só o tempo e o amor explicarão quem ela é.

Uma mulher é puxada da terra, viva, num jardim da localidade de Almofala, na fronteira entre Portugal e Espanha.

Os únicos traços da sua origem são o sotaque brasileiro e um colar de búzios, mas quem a recebe parece aguardar-lhe há muito a chegada.

Essa mulher sem identidade ou memória irá reconstruir a vida num lugar desconhecido, e Jorge será o homem que vai encontrar nela uma inesperada paixão.

Do outro lado do Atlântico, está Joana, o fantasma de um amor há muitos anos perdido por Miguel.

Quando estas quatro personagens se entrecruzam no tempo em busca de respostas às próprias angústias, revela-se uma trama fantástica de magia, ancestralidade e pertença. 

Cris


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

“Toda a Vida Que Resta” de Roberta Recchia

Há livros que nos fazem bem, cuja leitura é muito prazerosa, despertando logo nas primeiras páginas o nosso interesse. Foi o caso deste. 

Embora pensasse que seria uma leitura leve, isso não aconteceu. Ou melhor, sabia que ia tratar de um tema pesado porque li a sinopse em que é referido que a morte de um filho seria o pano de fundo desta trama, mas não ia preparada para que tratasse de temas pesados de uma forma tão profunda e real. Mas essa percepção boa só aconteceu a meio do livro.

Acompanhamos duas gerações de uma família italiana desde os anos 50. No princípio, os acontecimentos pareceram-me algo estereotipados: uma menina inocente engravida e o namorado não assume o filho. Mas o tom muda rapidamente e o enredo progride com um aprofundamento das características das personagens que me agradou.

E, como em muitas coisas na vida, há um antes e um depois. A morte de um filho muda radicalmente a vida de algumas personagens. Quando essa morte surge subitamente, trazendo uma onda de violência onde o futuro parecia muito promissor, a dor não tem limite. A intensidade do sofrimento está aqui extremamente bem retratada e é impossível o leitor não sentir que essa é a realidade que enfrentam muitas pessoas. 

Para além disso, há romance, segredos que escondem dores profundas, crimes que ficam no esquecimento, a vergonha, o luto, a violência e o sofrimento que ela traz, mas também a esperança. Personagens secundários muito bem caracterizados. Um “bolo” muito bem elaborado e que recomendo!

Terminado em 26 de Janeiro de 2025

Estrelas: 5*+

Sinopse

Toda a vida que resta é um romance precioso e íntimo, que explora os mecanismos da vergonha e do luto, mas sobretudo do carinho e do cuidado, trazendo-os à tona com uma delicadeza surpreendente.

No encantador cenário de Roma dos anos 50, Marisa e Stelvio apaixonam-se e constroem uma família com muito amor, a lembrar os clássicos do cinema a preto e branco.

Mas o seu mundo é arrasado por uma tragédia: a sua amada filha Betta, de 16 anos, é assassinada.

Todos perdem o chão.

O carinho e a cumplicidade desaparecem e fica apenas a dor e a mágoa por uma filha que se perdeu para sempre.

Miriam, a prima tímida e introvertida de Betta, não só presenciou a sua morte, como também ela foi, nesse dia, vítima de uma violência indescritível.

Mas carregou sozinha o fardo desse terrível segredo.

Quando julgava ser incapaz de continuar, encontra Leo, um jovem dos subúrbios, que traz uma nova luz à sua vida: o início de um amor que irrompe onde ninguém ousara olhar.

Cris



terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Resultado do Passatempo "Toca a comentar!" - Mês de Janeiro

Anunciamos o vencedor deste passatempo referente ao mês de Janeiro.

Este é o link para o post onde se encontra anunciado o passatempo.

Assim, através do Random.Org, de todos os comentários efectuados nesse mês, foi seleccionada uma vencedora! Foi ela:

Alexandra Guimarães


Parabéns! Terás que comentar este post e enviar um email para otempoentreosmeuslivros@gmail.com até ao próximo dia 5, com os teus dados e escolher um de entre estes dois livros:

Cris

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

“O Papel de Parede Amarelo” de Charlotte Perkins Gilman

Fiz a releitura deste conto para uma conversa informal com a escritora e tradutora Tânia Ganho na Livraria Buchholz. E há tanto para esmiuçar nas poucas páginas! 

O meu exemplar foi emprestado pela rede de bibliotecas aqui da zona e trata-se de uma edição bem velhinha da editora Húmus, com um posfácio de Rita Santana dos Santos e um texto da autora explicando porque escreveu este livro, o que a motivou a fazê-lo.

Diz a autora que durante muitos anos passou por uma depressão muito grave em que o estado de melancolia era uma constante. A receita do médico era muito descanso sem nada fazer, tendo uma vida “o mais doméstica possível”, sem leituras ou escritas. Melhorou quando deixou de fazer o que o médico dizia!

Então, o intuito deste conto seria alertar mulheres que se encontrassem em situações semelhantes.

O texto é riquíssimo em pormenores, mas é necessário estar atento porque algumas coisas estão subentendidas. Uma mulher escreve na primeira pessoa e logo nas primeiras linhas refere: “O John é médico e talvez – (não me atreveria a dizê-lo a ninguém, claro, mas isto fica na gaveta e é um grande alívio para o meu espirito), talvez essa seja a razão por que eu não melhore mais depressa.” pág. 8. Fica o aviso ao leitor que passa a olhar para estes rabiscos da narradora com outros olhos.

Onde se encontra ela? Que casa/mansão é essa onde se encontra que mais parece uma prisão e onde nada pode fazer? Como é o estado de espírito desta mulher que parece desequilibrada? Que esconde ela do marido? Sabe-se que teve uma criança há pouco, a parte psicológica parece desestabilizada o que faz o leitor pensar de imediato em depressão pós-parto…

E esse marido quem é e o que pretende dela? Com palavras amistosas impede-a de escrever, que é algo que lhe dá prazer. "Ele detesta que eu escreva uma palavra sequer". pág 12

Páginas intensas, com alguns momentos que parecem de loucura, muitas interrogações se colocam. Gostei muito e aconselho! 

Terminado em 25 de Janeiro de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse

Conto publicado no final do século XIX, O Papel de Parede Amarelo retrata a história semiautobiográfica de uma jovem mulher deprimida, recentemente mãe.

O marido, John, por sinal médico, demonstra grande incapacidade para entender o que se passa com ela, em larga medida ele próprio preso nos perímetros culturais da época.

Na esperança de poder ajudá-la, John muda-se temporariamente com a mulher para uma outra casa, bonita, campestre, onde tentará recuperar a paciente com ar puro e repouso de qualquer tipo de trabalho.

A mulher, sentindo-se presa, sem opções para a sua imaginação e criatividade — ademais num quarto com uma decoração que a incomoda — vai ficando cada vez mais longe da cura, cada vez mais perto da loucura.

Narrado na primeira pessoa, O Papel de Parede Amarelo é um dos mais importantes textos da literatura feminista americana, e global, entrando aprofundadamente nos sinuosos caminhos das perturbações mentais provocadas a mulheres que, afinal, são apenas impedidas de ser o que são.

Cris



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

“A Noite é Um Jogo” de Camilla Lackberg

Livro pequeno, de leitura rápida que se lê em pouco tempo. Sinceramente não achei nada de extraordinário. Passa-se numa noite de fim de ano, em Estocolmo, Suécia, em que quatro amigos de longa data se juntam para festejar. 

Vão sendo revelado algumas disfuncionalidades familiares, traições e uma vingança será servida à meia noite. Vingança algo espectável pelo que não me trouxe nada de novo, nem sequer um friozinho no estômago. 

A execução de um plano, arquitectado à pressa e que funcionou. Pouco verosímil.

Terminado em 21 de Janeiro de 2025

Estrelas: 3*

Sinopse
Quatro amigos
Liv, Martina, Max e Anton são melhores amigos há anos. Na véspera de Ano Novo, estão mais do que felizes por passar a noite juntos – a beber, a namoriscar e a jogar.
Quatro segredos aterrorizantes
Mas cada um deles guarda um terrível segredo. E, quando um jogo de verdade ou consequência toma um rumo sombrio, não demora muito a emergir uma verdade chocante.
Uma noite que terminará em assassinato.
Agora, os segredos já não o são. Nada mais será o mesmo. E nem todos viverão para ver chegar o novo ano…

Cris


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

“Meus Desacontecimentos” de Eliane Brum

Há momentos bons dentro das páginas deste livro, pedaços de escrita com que nos revemos, nós os apaixonados pela leitura! Começo logo com este excerto lido nas primeiras páginas: “Pressenti algo que só racionalizaria muitos anos depois: o poder da história contada” Pág. 27

Da história contada e da leitura à escrita foi uma descoberta que a autora brasileira, jornalista e repórter premiada, nos revela neste relato íntimo, introspetivo. A história da sua vida com as palavras. Não-ficção, portanto.

“Hoje, ao lançar meus anzóis no lago nebuloso do passado, em busca de um mapa cujo único destino sou eu, percebo que escrever me salvou de tantas maneiras e também desta. Desde pequena eu tenho muita raiva – e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.” Pág. 61

E esta pequena maravilha? Referindo-se à pessoa que a fez descobrir os livros: “Só Lili sabia que os livros não eram objetos, eram portais.” Pág91

Para além deste aspecto que me encantou, embrenhamo-nos numa narrativa algo dispersa pelo seu passado mas que nos agarra. Não achei uma leitura corrida, tampouco devia ser esse o objetivo da autora, pelo que nos traz um texto que impõe reflexão ao leitor. A dor e a perda de voltar atrás e relembrar. Mas também um sentimento bom ao fazê-lo.

Gostei e recomendo.

Terminado em 2 de Janeiro de 2025

Estrelas: 5*

Sinopse
«Lembro que, quando tudo começou, era escuro. E hoje, depois de todos esses anos de labirinto, todos esses anos em que avanço pela neblina empunhando a caneta adiante do meu peito, percebo que o escuro era uma ausência. Uma ausência de palavras. Essa escuridão é minha pré-história. Eu antes da história, eu antes das palavras. Eu caos.»

Era uma vez uma menina que parecia estar sempre a piscar o olho à morte. Essa menina revela, neste livro, como foi resgatada pela escrita. A cada página, desfilam, vivíssimos, lugares e personagens fantasmáticos, que pertencem ao imaginário coletivo ou a um álbum de família: a «casa-túmulo»; a praça da cidade pequena; a irmã morta, que é afinal a mais viva entre todos; a mãe, despovoada de alegria; o pai, filtrado pela sombra de peripécias domésticas e de um país amordaçado; a avó, comedida em tudo menos na imaginação; as tias, transformadas em flores para não murcharem.

Meus desacontecimentos marca a estreia em Portugal de uma escritora singular e multipremiada, que aqui regista a história da sua vida com as palavras: um relato delicado, impressivo e inquietante sobre como nos tornamos quem somos a partir da língua, da escrita, da memória. Neste itinerário de dentro para dentro, afiadíssimo e despudorado, Eliane Brum conta como se tornou uma narrativa de si, conduzindo o leitor numa viagem encantatória.

Cris


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

“As Malditas” de Camila Sosa Villada

Já tinha este livro na estante desde 2022 e na altura peguei nele para uma leitura em conjunto e não me puxou. Larguei-o, mas tive sempre em atenção os muitos comentários elogiosos de pessoas que conheço e em quem confio em relação às opiniões que emitem.

Para outra leitura conjunta peguei nele este ano e gostei muito da conversa que se teve posteriormente para o grupo. Foi uma discussão muito interessante. É certo que tenho alguma dificuldade nas denominações que me são, algo estranhas, mas creio ter conseguido acompanhar as várias opiniões e concordei com muitas delas.

Este livro é muito impactante. Duro, põe a nu uma realidade que desconhecia quase por completo. Camila retrata um grupo de travestis (mulheres trans), muito mal vistos pela sociedade argentina. O narrador, a própria Camila, dá-se a conhecer passado bastantes páginas lidas. Eu, que pouco sabia desta história, fiquei surpreendida. É muito crua a forma como se descreve a si própria, a sua infância e a sua vivência atual. O lugar obscuro onde vive com as suas companheiras, a invisibilidade a que são sujeitas versus a hipervisibilidade que obtêm quando saem à rua, o frio, a solidão e os consumos que as levam para lugares ainda mais solitários. A vida e a luta diária para sobreviverem, a violência sexual que sofrem, as ameaças de morte, a pobreza extrema. Um realismo que o leitor absorve com sofreguidão e que o leva a lugares que a sua imaginação não alcançaria não fora as palavras duras, mas tão incrivelmente reais da autora.

De quando em vez algum realismo mágico pincela a trama espelhando a mitologia da América do Sul. O leitor, por momentos, duvida do enredo, mas há partes tão sofridas que não nos fazem desconfiar da veracidade desses momentos. 

Caminhando entre o passado de Camila e o seu presente, esta leitura prende e agarra-nos fortemente. Não há adjetivação suficiente que mostre a beleza e o horror que se sente com estas páginas!

Uma leitura prazerosa, muito bem escrita, mas ao mesmo tempo dolorosa, que recomento muito.

Terminado em 19 de Janeiro de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse

Uma primeira obra literária impressionante, sem miserabilismo, sem pena de si, «As Malditas» encontra o fulgor de uma vida sem limites através de uma linguagem de memória, inventividade, ternura e sangue. Um retrato de grupo contado através de uma releitura da mitologia, um manifesto explosivo sobre a força a dor e vontade de sobreviver de um grupo de travestis que queriam ser rainhas: «O que a natureza não dá, o inferno empresta.»

Foi essa a origem deste livro, é essa a alquimia que percorre as suas páginas: a transformação da vergonha, do medo, da intolerância, do desprezo e da incompreensão em prosa de qualidade. Porque As Malditas é um relato de infância e um ritual de iniciação, um conto de fadas e de terror, um retrato de grupo, um manifesto político, uma recordação explosiva, uma visita guiada à imaginação fulgurante da sua autora e uma crónica única que vem polinizar a literatura. No seu ADN convergem as duas facetas do mundo trans que mais repelem e assustam a boa sociedade: a fúria travesti e a festa de ser travesti. E na sua voz literária convergem as três partes da santíssima trindade de Camila: a parte Marguerite Duras, a parte Wislawa Szymborska e a parte Carson McCullers. A apropriação de Lorca e de Jean Cocteau que Camila fez no palco volta a verificar-se nestas páginas com o que soube extorquir a Duras, a Wislawa e a Carson, sem perder em nenhum momento essa toada cordobesa essencial que mantém. Para dizer francamente, As Malditas é aquele tipo de livro que queremos que o mundo inteiro leia, assim que o terminamos. (Juan Forn)
 
Cris

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

“Canção para ninar menino grande” de Conceição Evaristo

Comecei esta leitura e, já a meio, entendi-a como pequenas histórias com um personagem masculino como elo de ligação. Pequenas histórias de mulheres poderosas que lhe estão ligadas pelo amor, essa fraqueza que lhes é mais forte que a vontade. Juventina, Neide, Eleonora, Aurora, Antonieta, Dolores, Dalva, Pérolo

Fio Jasmim é um jovem maquinista, bonito, que por força da profissão viaja por várias terras. O seu ego é imenso e, embora já com casamento marcado, não se prende a ninguém. Viaja, assim, pelo vale de muitos lençóis. Inquieto e inconstante nos seus amores, tenta manter a sua mulher no desconhecimento de tais aventuras. Tem como exemplo os ensinamentos de seu pai: homem viril e macho.

A narradora confessa: “Fui uma das mulheres de Fio Jasmim”.  Escreve e conta as várias histórias destas mulheres seguras, que sabem o que pretendem de Fio Jasmim.  Juventina destaca-se escrevendo uma composição: “Canção para ninar menino grande”.

“Quanto à vida de Juventina Maria Perpétua com Fio Jasmim, minha amiga me afirma sempre, que nunca precisou de um amor diferente do que ele lhe oferecia. Estava satisfeita, feliz até. Não queria um homem constantemente a seu lado. Não precisava de posar de esposa ou de namorada preferida. De noiva muito menos.” (pág.153)

O leitor pergunta-se no final: Quem saía enganado destas histórias de amor passageiro? Seriam mesmo as mulheres abandonadas? Ou Fio Jasmim? 

Terminado em 13 de Janeiro de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse
Juventina Maria Perpétua sentou-se a escrever a canção da sua vida. Canção para ninar menino grande é um romance povoado por vozes femininas que habitam o passado e as muitas geografias de Fio Jasmim – o jovem ajudante de maquinista que percorre a região. De cidade em cidade, de solidão em solidão, a partitura vai-se compondo com as histórias entrelaçadas destas muitas mulheres, e dos seus amores. Mas a repetição que fica no ouvido é a dos afectos abandonados, dos filhos sem pai, dos esquecimentos inofensivos, que Fio Jasmim deixa pelo caminho. Conceição Evaristo entra no território da masculinidade esvaziada e sem-rumo de homens-meninos e faz dele uma canção para mulheres livres.

Cris


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

"Toda a Gente Tem Um Plano” de Bruno Vieira Amaral

De leitura rápida, este livro foi o escolhido para um grupo de leitura. Nada tinha lido deste autor, fiquei curiosa e quis juntar-me à reunião final para o debatermos em conjunto. 

Narrado na terceira pessoa, a história conta partes da vida de Calita e saltita entre a sua infância e a idade adulta, o tempo presente. Regressa de Espanha onde era dançarino e DJ, porque a vida ensinou-o a ser inconstante, a meter-se em sarilhos e a reproduzir o padrão comportamental em que foi criado. 

O seu plano? Juntar dinheiro e comprar uma mesa de mistura para trabalhar de novo como DJ, que adora. Mas os seus planos saem constantemente gorados e a sua vida parece andar cada vez mais para trás.

“E o que dizer de si mesmo e do seu comportamento flutuante que desorientava os outros e até a ele confundia, que provocava o arrependimento imediato a quem se atravessara em sua defesa? Na verdade, só mais tarde compreendia que as oscilações e mudanças não se deviam à existência de um plano ou de uma conspiração para se aproveitar da boa vontade dos outros, mas eram um peso que ele carregava e do qual tinha 'consciência limpa' – que era a maneira de ele dizer noção clara – quando pensava 'arranjo sempre maneira de foder a minha vida'? Era assim que as pessoas eram, duplas, dia e noite num só.”

Gostei bastante do ambiente de bairro aqui descrito que muito traduz da nossa realidade. Aborda a temática da questão racial e da pobreza, das oportunidades perdidas, a solidão, a marginalidade, a procura de um lugar e os infortúnios que vão aparecendo constantemente. Alguns personagens que giram em trono de Calita mereciam um desenvolvimento maior.

Escrita rica, acessível, centrada no personagem principal e no seu desenraizamento. Na sua tentativa vã de conseguir o lugar pretendido. Criado sem amor, Calita reproduz o que não teve. Não sabe amar a filha, abandonando-a, como os pais fizeram com ele. Pensaria que ficaria melhor sem ele?

Terminado em 10 de Janeiro de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse
Esta é a história prodigiosa e trágica de Calita, um rapaz negro que tem um plano para a vida. Um retrato do que não vem na literatura bem-comportada -e que nos deixa sem respiração.

Depois de anos em Espanha, onde ganhava a vida como dançarino e DJ, entre outras atividades, Carlos, aliás Calita, regressa a Portugal mas não a tempo de se reencontrar com a tia Lena, a senhora que o criou. Não tem família, não tem amigos, não tem casa. Apenas o sonho vago de juntar dinheiro para comprar uma mesa de mistura e voltar a trabalhar como DJ. É acolhido por uma antiga vizinha que o ajuda a recomeçar e o põe em contacto com um pastor brasileiro e o fiel ajudante deste, Pula-Pula.

Aos poucos, Calita - que também tem outro nomes ao longo do romance - reconstrói a vida a trabalhar na cozinha de um hotel em Lisboa e na companhia do cão, Trovão. E quando parece estar próximo de concretizar os seus sonhos e cumprir o plano que traçou, a tragédia, as recordações e uma enorme quantidade de incidentes vêm bater-lhe à porta e devolvê-lo à estaca zero.

Toda a Gente Tem um Plano é a história trágica deste rapaz negro que cresceu sem os pais e que tem o dom indesejado de estragar todas as possibilidades de felicidade. Da infância em casa da tia Lena e do filho desta, Pedro Mulato, por onde circulavam figuras como o professor Pretérito Perfeito, a macumbeira Rosa Quivunge e o enigmático D. Pacas, sem esquecer a suposta namorada, Eneida, até à vida adulta e selvagem nas noites de Benidorm, passando pela adolescência nas ruas e a fuga do reformatório, foram muitas as vezes em que Carlos tocou a felicidade com a ponta dos dedos apenas para aprender que toda a gente tem um plano até a vida ruir - e os estilhaços lhe acertarem em cheio no coração. 

Cris


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

A Convidada Escolhe: Caderno Proibido

Caderno Proibido, Alba de Céspedes, 1952

De tantas tão boas leituras que fiz em 2024, tenho muita dificuldade em dizer qual ou quais foram as minhas preferidas, mas “Caderno Proibido”, o último livro que li no passado ano, é certamente dos melhores. Uma verdadeira revelação, um livro com a minha idade, mas que é duma actualidade incrível e no qual me revi, e certamente muitas mulheres que tiverem oportunidade de o ler.

O caderno proibido é uma revolução na vida de Valeria. Mulher italiana de 43 anos, casada há 22, mãe de uma rapariga e um rapaz, empregada num escritório, um dia começa a escrever num caderno de capa preta reflexões sobre si e a sua vida. A escrita no caderno – um diário – vai, pela primeira vez, obrigá-la a questionar tudo: a família, o casamento e, sobretudo, ela própria.

Valeria é uma mulher tradicional, preconceituosa, educada para se apagar nos cuidados com o marido e os filhos, a viver em função dos outros, a gerir um orçamento limitado que a leva a comprar para si só o indispensável, com uma vida social muito limitada, apenas mantém contacto com uma amiga de infância. Invisível, o seu trabalho não é valorizado. Até àquele domingo ameno em que sai para comprar um maço de tabaco para o marido e acaba por ser atraída pela capa preta de um caderno na montra da tabacaria e o compra.

A escrita do diário vai-se prolongar ao longo de seis meses e logo no primeiro dia em que trouxe aquele caderno para casa, nunca mais teve um momento de paz. O romance começa com estas palavras: “Fiz mal em comprar este caderno, mesmo muito mal. Mas agora já é tarde de mais para me lamentar; o mal está feito.” (pág. 7). A viver em função dos outros, descobre que nem consegue encontrar em casa um lugar onde escreva sem a presença da família, nem sequer tem um sítio seguro para esconder o diário “Afinal, não tinha, em toda a casa, uma gaveta, um cantinho que fosse meu” (pág. 8) / “… sonho que gostaria de ter um quarto só para mim.” (pág. 55) / “Repito que precisávamos de mudar de casa porque esta já é muito pequena, mas sinceramente é porque queria ter um quarto para mim.” (pág. 109). E pela primeira vez, deseja estar só, “Agora desejo que saiam para ficar sozinha a escrever” (pág. 9).

Como quando se toma uma decisão difícil, se escolhe um caminho que implique uma mudança corajosa, a pessoa questiona-se, tem dúvidas… Assim é com Valeria que põe em causa o seu direito de escrever o diário; que tem sentimentos de culpa, remorsos por roubar tempo para si sempre que escreve no diário; que se rebela contra o diário e tem vontade de o rasgar. Mas que tem ânsias de verter para o papel as suas inquietações e aquilo que nunca confessou a ninguém nem a si mesma: que se sente escrava da família e da casa; que não sabe o que é o descanso; que nunca teve tempo para ler um livro; que encara a família como um lugar de opressão; que o casamento e o nascimento dos filhos foram os únicos pontos altos da sua vida e que tudo o resto foi insignificante; que embora ache que na sua idade já é tudo tarde de mais, descubra que ainda é possível amar fora do casamento; que para sobreviver precisa de mentir; que um matrimónio exemplar é feito de um contínuo fingimento.

Não se espere deste romance respostas fáceis, nem um final feliz. Sendo uma narrativa que decorre no início dos anos 50, no pós-guerra e sempre com o receio de uma possível guerra futura, considero que não é um romance datado, antes aborda temas e inquietações intemporais: o envelhecimento, a sexualidade, os preconceitos sociais, a família, os conflitos geracionais, a ânsia de liberdade e de felicidade. Valeria, que sempre se habituara ao silêncio e que tinha pudor em confessar ao marido os seus sentimentos, ousa um dia perguntar-lhe se era feliz. Pergunta tão simples, de resposta tão difícil! “– Que pergunta! Pois naturalmente, porque não havia de ser? Os pequenos são bons, são saudáveis… Ricardo há-de fazer uma bela carreira na Argentina. Mirela já trabalha, depois casará. Que mais poderemos desejar, mamã?” (pág. 77).

O caderno proibido abriu a Valeria um caminho de liberdade e de questionamento de que é impossível livrar-se, apesar das amarras que a prendem. Termino com uma das últimas frases deste belo livro, inesquecível: “Todas as mulheres escondem um caderno negro, proibido. E todas têm de o destruir. (pág. 208)


30 de Dezembro de 2024

Almerinda Bento





segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

A Convidada Escolhe: O Poço e a Estrada - Biografia de Agustina Bessa-Luís

O Poço e a Estrada - Biografia de

Agustina Bessa-Luís, 

Isabel Rio Novo,

(2016-2018)

Quem me conhece sabe como gosto de biografias e de romances biográficos. Esta é a terceira biografia que leio publicada pela Contraponto, depois de Integrado Marginal de Bruno Vieira Amaral que biografou José Cardoso Pires e de A Desobediente de Patrícia Reis, sobre a vida e obra de Maria Teresa Horta. Todas elas valiosos e completos trabalhos de divulgação da obra dos biografados. Quando se acaba de ler a biografia de Agustina Bessa-Luís fica-se com um enorme respeito e gratidão pela biógrafa que, sem apoio da família da biografada, teve a coragem de se aventurar num trabalho minucioso e muito profundo sobre a vida e obra da escritora. Valendo-se do conhecimento da extensíssima obra da autora, de entrevistas e testemunhos de amigos e conhecidos, de pesquisas em arquivos e bibliotecas, só uma grande paixão pela obra permitiu um trabalho com o valor que é dado apreciar na leitura de O Poço e a Estrada. Eu, que pouquíssimo li de Agustina (o preconceito de me aventurar na leitura de uma autora com fama de difícil…) fico com vontade de deixar a preguiça e ir de seguida ler uma edição (5ª) d’ A Sibila da Guimarães Editores, que tenho cá em casa e que herdei da minha irmã Isabel.

Da leitura desta biografia, fica-se com a ideia da personagem invulgar, complexa, contraditória e nada consensual que foi Agustina Bessa-Luís. Impossível de catalogar, a sua paixão pela escrita foi a marca fundamental da sua vida. Criança observadora, silenciosa e precoce, gostava de estar sozinha e o gosto pela leitura e pela escrita revelou-se desde muito cedo e sempre aspirou a ser excepcional na escrita. Como Isabel Rio Novo refere, “…todos os romances de Agustina são biográficos…” (p. 16). A sua obra é extensa e a filha continua a trabalhar na organização de muito material escrito pela mãe que nunca foi publicado, como cartas e manuscritos de intervenções, entre outros.

Isabel Rio Novo traça nesta sua biografia vários aspectos que gostaria de referir e que nos permitem ter uma visão muito abrangente, não só da vida como da obra de Agustina. Sendo uma mulher que nasceu no início da década de 20 do século passado, nunca foi muito ligada ao meio intelectual da sua geração, nem apreciava eventos literários nem livrarias. No entanto, estabeleceu amizades duradouras e íntimas com autores como Ferreira de Castro, José Régio, Ilse Losa ou Eugénio de Andrade ou com Sophia de Mello Breyner ou o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. Nunca se furtou a grandes disputas públicas e desenvolveu ódios de estimação que ficaram célebres como com Jaime Brasil, o sobrinho de Teixeira de Pascoaes ou Natália Correia. “Cúmplices, mas sempre em choque” (p. 333), assim é referido o seu relacionamento com Manoel de Oliveira que, sendo uma relação de amor-ódio, correspondia de facto a uma admiração recíproca entre ambos.

Oriunda de uma família abastada e conservadora, há na biografia de Agustina momentos verdadeiramente inusitados, como por exemplo, um namoro e casamento nada convencionais, depois de ela própria ter posto n’ O Primeiro de Janeiro aquele que foi “ao longo de três anos… o único anúncio de cariz pessoal colocado por uma rapariga solteira.” (p. 132). Dessa ousadia, à revelia da família, resultou um casamento de grande entendimento e cumplicidade que durou 72 anos. Mesmo como esposa, mãe e avó, Agustina nunca seguiu os papéis que tradicionalmente eram impostos às mulheres, chegando mesmo a aconselhar as jovens escritoras a não se consumirem no papel de mães como fez em conversa com Inês Pedrosa “Agora vão começar a falar-lhe no casalinho, não vá nisso. É uma prisão que fazem às mulheres. Tomar conta de crianças dá muito trabalho, e depois não tem tempo para escrever. Olhe que no meu tempo era muito mais difícil ter só uma filha, e foi o que eu fiz.” (p. 159). Embora sendo uma mulher com um percurso cívico de direita, dizendo que as suas simpatias se situavam no centro-esquerda, a verdade é que também neste campo os seus posicionamentos são cheios de ambiguidades. “Em certo aspecto, sou o que se chama conservadora. No que se refere a um enraizamento que constitui o melhor da minha cultura” (p. 290). Desiludida e frustrada com o estado do país antes do 25 de Abril, o rumo da revolução gerou nela desconfiança, mas no final da sua presença pública na vida do país, apoiou sem hesitação a campanha do SIM pela despenalização do aborto a pedido da mulher, no referendo de 2007. Este percurso não pode deixar de ser polémico, algo que era indiferente para Agustina, insubmissa, independente e imprevisível.

A fama de Agustina surgiu e consolidou-se com a publicação de “A Sibila” em 1953. Agustina tinha 32 anos. A partir daí, os prémios e as homenagens sucedem-se e isso vai dar um impulso e um entusiasmo cada vez maior a Agustina para escrever. Isabel Rio Novo passa em revista toda a obra da escritora que lhe vai granjear ao longo da sua longa vida, homenagens, condecorações, prémios, nomeações para cargos de direcção e relevância em várias instituições, inclusivamente o seu nome foi ventilado em 1981 para o Prémio Nobel da Literatura. Havia por parte da escritora “um aparente desinteresse pela sua reputação literária” (p. 354), de acordo com testemunho de Lídia Jorge. Realço aqui que Agustina Bessa-Luís foi a primeira mulher a ser admitida na Academia de Ciências de Lisboa em 1989, uma instituição que durante 210 anos apenas tinha acolhido homens como seus membros.

Falar de Agustina é também falar das casas de família e as casas onde viveu com o marido desde a infância até à morte: Amarante, Régua, Póvoa, Coimbra, Esposende e Porto, com especial destaque para o número 100 da Rua do Gólgota, “a casa ideal” (p. 219); das viagens que fez com o marido, com Sophia de Mello Breyner e com o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. E, finalmente, da profunda ligação e cumplicidade que Agustina teve com o marido Alberto Luís, que a apoiava na transcrição dos manuscritos que ela lhe lia e que continuou a representá-la em actos públicos em que era homenageada e a que já não podia comparecer por estar doente.

Esta biografia da autoria de Isabel Rio Novo é um convite à leitura da obra de Agustina. Todos os capítulos são encimados com epígrafes que são frases dos diferentes livros de Agustina, como que a abrir a porta aos leitores para ousarem lê-la. Inês Petrosa, citada na pág. 406 diz “Abre-se ao acaso um livro de Agustina, e sempre encontramos uma frase que nos inquieta ou nos consola.”. Vamos então à epígrafe inicial do livro onde Isabel Rio Novo foi buscar o título da biografia de Agustina: “Viviam na aldeia e tinham no quintal um poço construído de cascalho e tão profundo que, diziam os velhos, se ouviam os galos cantar do outro lado; um dia, Marcelo, que tinha seis anos, inclinou-se para espreitar a mancha de água imóvel e viu uma estrada, branca, longa […]. Uma estrada no fundo do poço – ele jurava que a tinha visto. Aonde podia levar, como aventurar-se para chegar-lhe, para percorrê-la, medi-la, explorá-la?”

Agustina Bessa-Luís, O Manto


20 de Janeiro de 2025

Almerinda Bento