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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

"Lobos" de Tânia Ganho

Gostei muito dos dois livros anteriores da Tânia Ganho e tinha muita curiosidade em ler este, sobretudo porque sabia que a autora fazia voluntariado no Centro de Recuperação do Lobo Ibérico em Mafra e o que estava a escrever tinha a ver com lobos e com essa sua experiência.

Confesso que a leitura do "Apneia" me foi deixando, cada vez mais, em apneia, com uma revolta muito grande pelo que a personagem principal e o seu filho estavam a passar, principalmente porque as injustiças narradas constituem o dia a dia de muitas pessoas, ainda hoje. 

Com esta leitura de "Lobos" isso não aconteceu. Foi uma leitura mais calma mas não menos impactante. No cômputo final creio que ainda gostei mais deste. São tratados muitos temas actuais, que (nota-se!) têm por base uma profunda pesquisa sem que, contudo, o leitor sinta que a autora se limitou a despejar informação. E o que se aprende, senhores!!! Tanto conhecimento que nos é passado em matérias tão diversas e actuais!

Claro que, após ter lido o livro e ouvido a autora falar tão bem, numa apresentação, fiquei com vontade de ler "O Pintor de Batalhas" de Arturo Pérez-Reverte, livro que mora cá em casa há muito.  Nas primeiras páginas lê-se uma citação desse autor: "Há lugares de onde nunca se regressa". E este livro fala-nos precisamente disso, das vivências que vamos tendo nas nossas vidas, que nos marcam profundamente e as quais nos é difícil deixar ir, libertar.

A acção decorre, maioritariamente, no tempo da pandemia mas vai fazendo algumas analepses e focando-se em temas como a guerra, a pandemia, abusos sexuais, Alzheimer, consoante as personagens. Vamos conhecendo o seu passado e como ele influencia e marca o presente. 

Freda, Helena, Leonor, Stefan, Amélia, todos nos ficam no coração de uma forma ou outra. E o António? Personagem secundária que não se esquece mesmo. 

Gostei muito e recomendo. Venha o seguinte, Tânia!

Terminado em 24 de Junho de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse

Fedra passou mais de vinte anos nalguns dos piores lugares da Terra. Depois de ter estado no Ruanda, Kosovo, Iraque, Mali, a antropóloga forense regressa por fim a casa. O seu novo trabalho no Instituto de Medicina Legal obriga-a a mergulhar diariamente nas profundezas sórdidas da dark net, uma experiência irreparavelmente solitária.
Stefan vive na cabana que construiu numa floresta. Após décadas de nomadismo, o antigo repórter de guerra alemão leva uma vida de eremita, procurando na sua relação com a natureza um contraponto à crueldade humana que testemunhou.

Leonor, uma adolescente de 14 anos, isola-se no apartamento familiar, num bairro privilegiado de Lisboa, após ser vítima de um crime sexual. Helena, a mãe, revela-se incapaz de lidar com o trauma e refugia-se numa obsessão que ameaça destruí-la a ela e à filha.
Nos bastidores destas vidas que se entrelaçam, Amélia, uma mulher no limite da memória e da sobrevivência, guarda a chave de um mistério que poderá nunca ser desvendado.

O regresso de Tânia Ganho à ficção apresenta-nos pessoas que enfrentam os seus demónios num momento de viragem das suas vidas e do mundo. 

Cris 



quinta-feira, 14 de agosto de 2025

"Qual é o Teu Tormento" de Sigrid Nunez

Li a sinopse e gostei, por isso quis ler este livro. Agora que o terminei sei bem que partes gostei e aquelas que achei desnecessárias porque me fizeram perder o fia à meada. Creio que a autora se perdeu em divagações que quase me fizeram quase desistir de o ler e que não achei pertinentes para a história em si.

Tirando essas, talvez umas 30/40 páginas, e analisando o cômputo final achei muito interessante como a autora narra esta história, de como aborda um tema tão pesado, a finitude de quem sabe que o fim está próximo e aguarda em sofrimento a própria morte. E, também, de como se torna difícil para quem está próximo agir e comportar-se da "melhor" maneira.

Duas amigas, uma com uma doença em estado terminal, após demorada conversa, decidem passar juntas os dias que ainda possuem. Sendo que a intenção de uma delas é pôr termo à vida para o que necessita de ajuda da outra, a narradora. São as personagens centrais do enredo

Todos os sentimentos envolvidos, de parte a parte, estão rigorosamente colocados no papel com mestria. A narradora questiona-se frequentemente como agir, o que falar, e vai recordando pequenos episódios passados. E neste processo há uma amizade que se fortalece e risos, muitos risos, também os há, surpreendentemente.

Gostei do final. Que final seria possível sem ser o previsível? Este. 

Não se lê este livro com um sentimento de opressão e isso agradou-me muito. 

Terminado em 30 de Junho de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse

Todo o ser humano tem necessidade de falar sobre si e de ser ouvido.

É com esta convicção que a mulher que aqui nos narra olha em redor, presta atenção às histórias das pessoas e se questiona sobre as suas dores.

Quando toma conhecimento de que uma amiga que não vê há longos anos está internada com um cancro terminal, visita-a e aceita partilhar casa com ela e acompanhá-la até ao fim.

Conversam, riem, leem, veem filmes, recordam a juventude e as relações mais ou menos complicadas dos seus passados, produzindo uma reflexão comovente, polvilhada de humor e de crítica social, sobre o nosso tempo e o absurdo da vida e da morte.

Qual É o Teu Tormento é um texto extraordinário de homenagem ao poder da empatia e do companheirismo.

Cris 


quarta-feira, 13 de agosto de 2025

"Água Salgada" de Charles Simmons

Livro rápido de se ler e que prende depressa o leitor porque logo no começo é largada uma bomba: "No verão de 1963 apaixonei-me e o meu pai afogou-se". Gosto quando o início tem o condão de nos agarrar e quando até nos é contada grande parte da história. Isto tem de ser feito com a sabedoria necessária para nos instigar a leitura. Foi o caso.

Um livro bom para se ler no verão, leve q.b., que nos conta a história de um adolescente de 16 anos e da sua família próxima, que decorre num verão em que vários acontecimentos se tornam impactantes para o seu crescimento e personalidade. Um verão de descobertas diversas que vão desde o amor até desilusões bem maiores. As tensões familiares sempre presentes.

Passado junto a uma região costeira, o mar está presente com a sua calmaria mas também revolto como só ele sabe ser. 

Gostei bastante deste romance breve mas com uma forte intensidade no que concerne aos sentimentos do personagem principal, Michael, que nos faz lembrar como tudo na adolescência pode tomar proporções maiores. Crescer, pode doer.

Terminado em 12 de Junho de 2025

Estrelas: 4*

Sinopse

Água Salgada é uma obra de rara inteligência narrativa, guiada por um instinto visceral que escava o coração da história para revelar uma beleza sem igual. Charles Simmons tece uma narrativa sublime sobre a descoberta do primeiro amor e mergulha no âmago da necessidade humana de ser desejado, explorando com sensibilidade os laços entre pai e filho e os desafios da adolescência, descrevendo uma corrente intensa de anseios, descobertas e desilusões.

***

«No verão de 1963, apaixonei-me e o meu pai afogou-se.» Assim começa este romance inquietante. Numa ilha isolada ao largo da costa atlântica, Michael, de dezasseis anos, passa as férias como sempre, ao lado dos pais na sua magnífica casa de praia em Bone Point. 

Mas este não será um verão como os outros. A chegada da enigmática Sra. Mertz — herdeira de uma linhagem russa — e da sua filha Zina, uma jovem de vinte anos vibrante e irresistivelmente sedutora, desencadeia um turbilhão de emoções.

Michael será levado aos limites do desejo, experimentando a doçura e a dor do primeiro amor, os segredos da vida adulta e as consequências irreversíveis das diferentes formas de afeto. 

Entre descobertas e desilusões, este é o retrato delicado e devastador de um último verão de inocência, e o que poderia não ter passado de um amor de verão, toma um rumo inesperado.

Uma obra-prima literária com reminiscências de O Primeiro Amor de Turguénev e Werther de Goethe.

Cris 


terça-feira, 12 de agosto de 2025

A Convidada Escolhe: "Proibida na Normandia"

 
 
“Proibida na Normandia” – Rosario Raro, 2024

Esta é a história de uma mulher invulgar, determinada, que, apesar da sua vida, por ser mulher, não ficou para a história. Jornalista e fotógrafa, Martha Gellhorn nunca receou cobrir guerras no terreno, sabendo que muitos dos seus colegas de profissão relatavam guerras como se as vivenciassem no terreno, quando muitas vezes se limitavam a escrever relatos sem nunca saírem dos hotéis onde estavam hospedados. Martha Gellhorn esteve na guerra de Espanha (1937), da Finlândia (1939) e da China (1940). Não se vergou quando lhe foi recusada a acreditação para viajar num navio militar, que era concedida aos seus colegas jornalistas. Martha Gellhorn foi a única mulher presente no desembarque das tropas aliadas na Normandia no dia 6 de Junho de 1944, mas o seu nome e as suas crónicas foram censuradas e apagadas como se ela nunca lá tivesse estado. “Proibida na Normandia” é o relato dessa história.

Ela estava bem consciente da realidade do mundo do jornalismo eivado de misoginia, condescendência e paternalismo para com as jornalistas. No seu trabalho no terreno, apercebia-se do papel que as mulheres desempenhavam na guerra nas mais variadas esferas, muitas vezes subalternizadas apesar de tantas vezes desempenharem missões estratégicas e fundamentais; nas suas crónicas, ao contrário, sempre as visibilizava, nomeava-as, retirando-as do anonimato e valorizando o trabalho que desempenhavam. Ela própria, que tantas vezes foi referida com mulher de Ernest Hemingway, sempre rejeitou ser “uma nota de rodapé” na vida do marido ou de outra pessoa (págs. 129 e 363). Porque se bateu pelo direito ao reconhecimento do seu trabalho na frente de guerra, por querer publicar a verdade, mesmo quando ela não seguia a orientação do poder e da comunicação social, foi considerada antipatriota e censurada. Além de nunca ter recebido a Bronze Star Medal concedida a Hemingway, a crónica de Martha não existiu e “a sua presença foi apagada da praia de aço de Omaha” (p. 357)

O romance centrado na guerra e sendo uma reflexão sobre os horrores e as sequelas das guerras, tem um desenvolvimento ao longo do tempo desde os preparativos nas semanas anteriores ao desembarque, o desembarque propriamente dito e as semanas seguintes. Passado um ano do dia do desembarque, a comunicação social quer esquecer os horrores dos campos de concentração e a comunicação social prefere romancear e realidade, em vez de publicar a verdade.

Há, mesmo a acabar o livro, um desânimo uma desesperança expressos no vaticínio de H. G. Wells: «Se não acabarmos com a guerra, a guerra acabará connosco». A narradora imagina o mundo dois séculos depois e pergunta-se “Como será o mundo a 6 de Junho de 2144? Quem o contará?” (p. 361)

3 de Junho de 2025

Almerinda Bento



segunda-feira, 11 de agosto de 2025

"A Lista de Leitura" de Sara Nisha Adams

Um livro que se lê com muito gosto e rapidamente apesar das suas quase 400 páginas. A história atrai-nos porque o amor pelos livros está presente bem como o gosto da leitura e o seu poder curativo. Sim, ler significa aprender, viajar e criar relações de empatia e ódio pelos personagens. A ficção pode ter um efeito curativo sobre as nossas preocupações que, falo por mim, às vezes somos nós que as aumentamos com medos futuros que não têm razão de ser. Revemo-nos em muitas situações e aprendemos com elas.

E é em torno duma lista de livros a ler que surge, aparentemente do "nada", que as ligações entre as personagens se vão tornando mais fortes, laços de amizade que se criam em que os livros são o mote para encontros e reuniões. Dores emocionais que se atenuam quando essas relações se fortalecem.

"... a Ba sempre me disse que, ás vezes, quando se gosta mesmo de um livro, é preciso lê-lo novamente! Para revivermos aquilo que gostávamos e descobrirmos o que podemos ter perdido. Os livros mudam sempre à medida que a pessoa que os lê muda também," pág. 357

E como sei que um bom leitor não resiste a uma lista e "só para o caso de precisares", aqui fica a lista que está no palco deste livro que gostei muito de ler, porque " os livros mostram-nos o mundo, não o escondem":

- Mataram a cotovia,
- Rebecca,
- O Menino de Cabul,
- A Vida de Pi,
- Orgulho e Preconceito,
- Mulherzinhas,
- Beloved
- Um Bom Partido

Terminado em 30 de Maio de 2025

Estrelas: 5*

Sinopse
Há livros capazes de mudar uma vida para sempre…

Mukesh leva uma vida pacata num subúrbio de Londres e tenta manter as rotinas estabelecidas pela sua mulher, Naina, que faleceu recentemente. Vai às compras todas as quartas-feiras, frequenta o templo hindu e tenta convencer as três filhas de que é perfeitamente capaz de organizar a sua vida sozinho.

Aleisha é uma adolescente que trabalha na biblioteca local durante o verão e que, curiosamente, não gosta de ler. Até que encontra um papel amachucado dentro de um exemplar de Mataram a Cotovia com uma lista de livros dos quais nunca ouvira falar. Intrigada, e um pouco entediada com o seu trabalho, decide começar a ler os livros aí sugeridos.

Quando Mukesh vai à biblioteca para devolver um dos livros de Naina e pedir outras sugestões de leitura, numa tentativa de criar laços com a neta, Aleisha recomenda-lhe os títulos da lista. É assim que, livro a livro, vão descobrindo a magia da leitura e encontrando novos significados para as suas vidas. E é através destas leituras partilhadas que Aleisha e Mukesh encontram a força necessária para lidar com os desgostos e problemas do dia a dia e reencontram a alegria de viver.

Uma história sobre amizade, amor e o poder que os livros têm de mudar a vida de quem os lê. 

Cris 


sexta-feira, 8 de agosto de 2025

"O Caderno Proibido" de Alba de Céspedes

Escrito em forma de um diário realizado por uma mulher de cerca de 40 anos, Valéria, este livro surpreendeu-me muito pelas reflexões que somos levados a fazer após o terminus da sua leitura. É casada, com dois filhos já adultos e o espaço temporal decorre já no pós II Guerra, na década de 50, em Roma. Algumas analepses colocam-nos a par do seu passado.

A compra de um caderno despoleta nela uma vontade, cada vez mais crescente, de se colocar a nu perante as suas páginas. Despe-se gradualmente de preconceitos e receios perante uma escrita quase diária. Junto com essa auto-análise, que acaba por ser uma jornada de auto-conhecimento, o leitor vai conhecendo esta personagem e maravilhar-se com ela.

O problema é que Valéria sente que deve esconder o caderno. Logo aqui, o leitor apercebe-se das razões implícitas que a levam a fazê-lo freneticamente com medo que alguém o leia. A própria acção de o esconder leva a questionar-se dos motivos que a levam a tal. As questões sobre tudo na sua vida, multiplicam-se. Angústias reprimidas, frustrações e desejos que não sabia que possuía vêm ao de cima. Que papel possui no seio da sua família? Como a vêem os seus filhos e marido?

A narrativa vai crescendo de intensidade e uma trama que poderia parecer suave e ligeira torna-se forte e com momentos intensos de análise e revolta.

"Sei que as minhas reacções aos factos que anoto com minúcia me levam a conhecer-me cada dia mais intimamente. Talvez haja pessoas que conhecendo-se, conseguem melhorar-se; eu, pelo contrário, quanto mais me conheço, mais me perco." Pág 169

Leitura que se vai tornando desconfortável mas que é extremamente necessária.

Terminado em 5 de Maio de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse

Roma, década de 1950: Valeria Cossati vai comprar cigarros para o marido, ignorando que sairá da tabacaria com um caderno que há-de mudar a sua vida.

Ao transformar esse caderno num diário secreto onde regista pensamentos e desejos do dia-a-dia, Valeria transforma-o num instrumento de emancipação: liberta-se das convenções sociais, do sentido de dever para com o marido e os filhos, dos limites autoimpostos que regem o seu pequeno mundo.

A partir daqui, tudo é questionado.

Valeria compreende que está em translação e decide conquistar o lugar que escolheu para si.

Clássico redescoberto, testemunho histórico de uma época, retrato primoroso da turbulência doméstica, O caderno proibido condensa a sede de liberdade de toda uma geração e das outras que se lhe seguiriam.

Precursora da linhagem literária mais disruptiva da modernidade – de Virginia Woolf a Natalia Ginzburg, de Marguerite Duras a Vivian Gornick –, Alba de Céspedes celebra aqui o poder da escrita e a audácia indómita de uma mulher numa sociedade em ebulição.

Cris 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

"Kramp" de Maria José Ferrada

Livro pequeno, com frases curtas e capítulos curtos também que se lê num ápice. A narradora é uma menina de 7 anos, M, que acompanha, sempre que possível, o pai, caixeiro viajante, que vendia ferragens da marca Kramp pelo Chile, aquando da ditadura de Pinochet. Estas viagens com o seu pai, D, foram uma porta aberta de aprendizagens, de acontecimentos que ela soube aproveitar e que as meninas não tinham habitualmente.

D começa a verificar que quando leva a filha nas suas viagens, vende muito mais, ajudando até os seus colegas. É um mundo novo que se abre para M. O seu crescimento é marcado por estas viagens e pela profissão do pai que já mostra sinais de decadência. A mãe é descrita pela própria M como alguém ausente e triste. Deprimida?

A percepção do mundo vista pelos olhos de uma criança (de qualquer criança, na verdade) é diferente da de um adulto, tudo é maior, tem mais peso. Este livro fala-nos também sobre a mudança que a vida de M sofre. Tem a convicção que a sua presença é imprescindível para o pai, sente-se quase adulta. Consegue explicar o mundo e o seu funcionamento a partir dos produtos vendidos por M de uma forma que nos prende e faz sorrir!

Mais tarde, revisitando os lugares onde foi feliz verifica que essas percepções infantis podem não corresponder às que possui numa fase posterior. Romance autobiográfico desta escritora chilena que gostei muito de ler. Pega-se e lê-se numa tarde.

Terminado em 4 Abril de 2025

Estrelas: 5*

Sinopse
Uma menina acompanha o seu pai, um caixeiro-viajante, pelo Chile, vendendo ferragens da marca Kramp, e elaborando toda uma teoria poética e filosófica sobre o mundo, construída na fronteira entre a ingenuidade e a sabedoria, através de metáforas criadas a partir dos produtos que vende, dos filmes que vê, dos fantasmas da ditadura, e do contacto social e cultural com um mundo em ruptura, interna e externa. Um livro maravilhoso, vencedor dos prémios do Círculo de Críticos de Arte, do Ministério da Cultura e do município de Santiago do Chile. 

Cris 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

"Tese Sobre Uma Domesticação" de Camila Sosa Villada

Tendo lido o anterior livro desta autora e ficado agradavelmente surpreendida (superou em muito as minha expectativas!) - opinião aqui - tinha, é claro, que ler este. Desta feita, a surpresa não foi tão grande porque sabia ao que ia. Esperava uma escrita belíssima, temas aprofundados e tratados com espírito crítico, momentos que deduzo traduzirem pedaços da sua vida. Assim aconteceu. 

A escrita é maravilhosa, com uma crueza que achei fruto das vivências da autora. Chamar e descrever as coisas pelos nomes MAS no momento certo, enquadradas perfeitamente na trama, não é fácil porque se pode cair na vulgaridade. Isso realmente foi um aspecto que apreciei deveras. 

Li algures que a autora desde cedo começou a escrever e que, por essa razão, tem muitos textos/ livros "prontos a sair do forno". Se for verdade regozijo-me com isso. Quero ler o que for publicado sobretudo por dois motivos. Primeiro porque saber escrever não é para todos, ter uma história (ficcional ou não) muito interessante também o não é. Juntar os dois aspectos então...

Algo muito interessante, diferente neste livro em relação ao outro, é o facto dos personagens não possuírem nomes próprios. Actriz, advogado, mãe, pai, irmão, filho... Fez-me reflectir nessa escolha. Terá sido um mero estratagema de escrita ou teve outra intenção, a de colocar o leitor a pensar? Porque sem nomes próprios todos podemos ser um pouco como eles... O leitor pode espelhar-se num ou em vários personagens com mais facilidade.

Terminado em 28 de Março de 2025

Estrelas: 6*

Sinopse

A atriz travesti de grande notoriedade pela sua representação de A Voz Humana, de Jean Cocteau, tem um casamento aberto com um belo advogado homossexual.

Juntos, adotaram uma criança seropositiva.

Esta nova vida familiar aparentemente estável – com dinheiro e conforto – é uma cedência aos padrões burgueses e não podia estar mais nos antípodas da antiga existência dela: boémia, despreocupada e livre.

O erotismo, a violência e a imensa ternura habitam os vínculos que unem o casal.

Mas ambos vivem acabrunhados pela culpa e por outros infernos secretos.

«Uma só travesti é suficiente para minar os alicerces de uma casa, desfazer os nós de um compromisso, romper uma promessa, renunciar a uma vida», pensa a atriz e protagonista deste romance.

Tese Sobre uma Domesticação é uma história de pactos invisíveis e paixões arrasadoras, em que uma família se agarra a breves momentos de felicidade, sem se aperceber de que foi derrotada no seu desígnio, desde o início.

Tal como o primeiro romance de Sosa Villada, As Malditas, já transformado numa série televisiva, também este Tese Sobre uma Domesticação foi recentemente adaptado ao cinema.

«O livro sobre sexualidade mais importante que li, desde Jean Genet.

Versa a amizade, o desejo e a violência.

Desafia todos os atuais enquadramentos da política e da literatura.

É um fragmento do futuro.» Édouard Louis
«Camila Sosa Villada constrói uma linguagem que parece saída dos sonhos.

Uma sensação literária.» Rolling Stone
«Este romance desafia as ideias contemporâneas de género, sexualidade e amor.» The Wall Street Journal
«Um mundo fantástico com partes iguais de violência e ternura.

Questiona as ideias contemporâneas de género, sexualidade e amor.» Wall Street Journal

Cris


sexta-feira, 6 de junho de 2025

A Convidada escolhe: "Anónimos de Abril"

 

Anónimos de Abril” – Vol. 1

José Fialho Gouveia, Rogério Charraz, Joana Alegre, 2005

Este é o primeiro volume de um projecto que começou em Janeiro do ano passado com o espectáculo Anónimo de Abril em Lisboa, no Tivoli. O livro reúne histórias de doze mulheres e homens que lutaram pela liberdade, que estiveram entre aqueles muitos milhares que exultaram na rua com a revolução, mas de quem a História não fala.

Transcrevo a dedicatória a abrir o livro

À Celeste,

à Aurora,

ao Alberto,

à Herculana,

ao Luíz, à Albina,

à Branca,

ao Fernando,

ao João, ao José, ao Fernando,

ao Francisco

e a todos aqueles que, de forma mais ou menos anónima, ousaram lutar contra um regime que durante quarenta e oito anos intimidou, espancou, prendeu, torturou e matou.”

São histórias de vidas simples, de luta, contadas pelas próprias ou pelos seus filhos/as ou netos, quando os pais ou avós já não estão vivos, ou a partir de registos em jornais da época numa pesquisa que, segundo os seus autores, “tem ainda muito caminho para percorrer”. No final de cada uma das histórias uma canção que pode ser ouvida e seguida através de um QR Code.

É um tributo singelo, mas muito bonito a pessoas a quem devemos a enorme gratidão pelo seu gesto, pelo seu heroísmo, pelo seu exemplo.

Celeste Caeiro a quem ficamos a dever o simbolismo dos cravos associados à revolução de Abril e que ainda teve a felicidade de descer a Avenida da Liberdade nos 50 anos do 25 de Abril.

Aurora Rodrigues que aprendeu na sua experiência na prisão da ditadura que “O medo foi sempre a grande arma da repressão. Todavia, há alturas na vida em que não se pode recuar. Essa era a altura. Tinha de vencer o medo.” (p. 25)

O padre Alberto Neto assassinado em 1987, tendo o seu homicídio nunca sido esclarecido, “Tinha Deus por companheiro/ O Senhor como aliado/ E rezando foi guerreiro/ Contra a guerra e contra o Estado”. (p. 57)

O casal Herculana e Luíz Carvalho, os únicos familiares de um preso político no Tarrafal a visitarem o filho. Mas a sua acção e solidariedade tiveram um alcance muito para além do amor de pais, alargando-se a todos os presos que no Tarrafal estavam com o filho Guilherme.

Albina Fernandes, mulher dedicada ao ideal do partido, foi mãe de Daniela e de Rui Pato. O relato de sofrimento que foi a vida desta mulher e que é contado através dos filhos neste “Anónimos de Abril” é bem o retrato da brutalidade que foi a repressão perpetrada pela ditadura a quem se opunha ao regime. No documentário “Aqueles que Ficaram (Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem)” da autoria de Marianela Valverde e Humberto Candeias, com testemunhos de familiares – mulheres e crianças – de presos políticos e militantes na clandestinidade, temos a perspectiva daqueles que se viram privados do contacto com os maridos e pais e dos traumas daí decorrentes.

Branca Carvalho, uma jovem que viveu praticamente um ano na clandestinidade e que, através de um relato em forma de carta ao filho, lhe explica as privações e imensas dificuldades que acarretava o facto de se abandonar tudo – família, amigos, trabalho – sem saber por quanto tempo, “As vidas que escolhêramos não tinham prazo de validade” (p. 101) Uma das questões que ela realça tem a ver com um aspecto que foi muito silenciado e que ela aborda: a marginalização ainda maior por que passavam as mulheres na clandestinidade, passando por mulheres do “casal”, numa posição de subalternidade - “sentia-me reduzida a tarefas domésticas, (,,,) “Cedo percebi que o Partido aproveitava mal as capacidades de trabalho das “suas” mulheres revolucionárias. Uma atitude algo machista disfarçada e dissimulada em razões de segurança, notaria, com amargura, muitos anos depois.” (p. 100)

Costuma-se dizer que o 25 de Abril foi uma revolução sem sangue, mas a verdade é que no final desse dia, quando Marcelo Caetano já se tinha rendido, a partir da sede da PIDE na António Maria Cardoso, uma rajada assassina acabou com a vida de 4 homens que se juntavam na alegria da vitória sobre a ditadura. São os Mortos de Abril como lhe chamam os autores do livro: Fernando Giesteira, José Barneto. João Arruda e Fernando Reis. “Só houve quatro mortos no 25 de Abril e a justiça foi branda com os elementos da PIDE. Ainda assim, o caminho para chegar à Liberdade interrompeu muitas vidas. Além dos que morreram às mãos da polícia política, convém não esquecer os mais de cem mil mortos na Guerra Colonial. O vermelho dos cravos de Abril também foi feito de sangue”. (p. 136)

O livro termina com um depoimento sobre Francisco de Sousa Mendes, um dos jovens militares que constituiu a coluna militar liderada por Salgueiro Maia que na madrugada do 25 de Abril partiu da Escola Prática de Cavalaria a caminho de Lisboa. Francisco é neto de Aristides de Sousa Mendes, que na sua qualidade de diplomata e desobedecendo às ordens de Salazar, salvou milhares de judeus ao conceder-lhes vistos que lhes permitiram fugir de uma morte certa.

Aguardemos pela continuação deste projecto de memória, agora que, como nunca antes, a memória da ditadura é tão importante para que não se caia de novo noutra.

5 de Maio de 2025 

Almerinda Bento 

terça-feira, 3 de junho de 2025

A Convidada escolhe: "Corpo Vegetal"

Corpo Vegetal, Julieta Monginho, 2024

 

Este é o quarto livro de Julieta Monginho que leio. Leio-o quando a sociedade portuguesa é sacudida pela notícia da violação de uma jovem por três “influencers” que filmaram o acto e o partilharam na internet, tendo a violação sido vista por milhares de pessoas, sem que alguém se tenha levantado para denunciar o abuso. Leio-o, quando recentemente, um conhecido sociólogo português acusado de assédio afirmou sentir-se “profundamente injustiçado, profundamente magoado. Apesar desta mágoa toda acho que não consigo odiar. Elas [as mulheres que acusam] de alguma maneira são vítimas do neoliberalismo que se instalou e é pena que não assumam a sua responsabilidade, porque isso é típico do neoliberalismo, é transferir para os outros as responsabilidades.” A violação é o que está no centro de “Corpo Vegetal”, com as consequências devastadoras para a vida de uma mulher na sequência da violação.

Os verbos que dão nome aos seis capítulos do livro - Cair, Correr, Caminhar, Recuar, Voar, Dançar – acompanham Mimi, a personagem central, que podia ser qualquer uma das muitas mulheres que se confrontam com esse crime hediondo que atenta contra a sua autonomia e que tantas vezes fica impune, numa sociedade que inverte/subverte a situação, desculpabilizando os homens e olhando para as mulheres como culpadas. «Ela estava a pedi-las!» sintetiza uma visão discriminatória e culpabilizadora, tantas vezes assumida por quem detém a justiça, que deveria, ao invés, ser respeitadora da igualdade e dos direitos de todas as pessoas, independentemente do género.

Mimi é tradutora, tem 48 anos, é mãe de Bea e separada de Miguel, com quem mantém uma relação de amizade e cumplicidade que a separação não matou. Os pais, já idosos, são acompanhados por Isa, uma cuidadora brasileira e Rosalina, uma amiga artista que visita os pais de Mimi são as pessoas do círculo familiar da personagem central.

No polo oposto, Samson X Baxter, o autor americano de cinquenta e muitos anos, que Mimi só conhece do último livro que anda a traduzir e dos emails que trocam e videochamadas que fazem para tirar dúvidas. Até que há “esse maldito dia” do assalto sexual e com ele o pasmo, o horror, a paralisia, o desespero, a ambivalência entre denunciar ou ficar parada, adiar ou agir e enfrentar o poder. Do encontro em Lisboa, sobra a orquídea Juana que se “tornou prova de terror” (p.26) e a repulsa bem no fundo do seu “corpo rasgado” (p.10).

A narrativa coloca Mimi e coloca-nos a nós, leitores, perante várias perguntas. O que fazer? Denunciar? Como fazer uma denúncia? A quem se/me dirigir? Vale a pena avançar quando “já ninguém acredita em nada” (p.81) e já ninguém acredita no #metoo? A violência misógina das mensagens que o advogado de Samson X lhe envia é o espelho duma sociedade em que a impunidade dos agressores é total. De que lado está afinal a justiça, quando os direitos à privacidade e à autonomia são postos em causa, quando são pedidas à vítima provas de que não fez nada de mal (p. 120)? Nunca li “O Processo” de Kafka, mas em dada altura da leitura deste “Corpo Vegetal” recordei “O Castelo” e as barreiras intransponíveis que a burocracia cria para impedir o acesso à justiça.

Contudo, é no seio da família e das amigas, que Mimi ganha força para avançar e fazer ouvir a sua voz. O pai que “considera a insubmissão o único sentido da História, o único sentido da vida” (p.18) e que (se) apoia (n)a filha para escrever a sua “Teoria Geral da Insubmissão”. Isa que ouve e é quem ouve os seus segredos mais íntimos. A filha que pressiona para que a mãe se mexa e que é quem denuncia publicamente o violador. Miguel, o Próspero de “A Tempestade” que consegue mobilizar uma pequena Vila alentejana (a ilha) para a alegria do encontro com a cultura. Miguel, o que está lá sempre para a ouvir. Tão importante saber ouvir! Rosalina, que desenha árvores e que tem a arte da escuta dos outros. A mãe e as memórias da roda de mulheres que se juntavam para ouvir as novelas e daí até à ideia de se criar “uma comunidade de leitoras” (91). “Tontices, dizia ela. Mais lúcidas que os meus devaneios. A cadência da voz, a vivacidade, as mãos nodosas, falantes, sobrepostas à paisagem. Uma serenidade alheia aos meus últimos dias. Queriam mostrar-me outra possibilidade de viver.” (p. 93)

“Corpo Vegetal” vai ser objecto de uma conversa no próximo encontro de Leia Mulheres no Aljube. Como todos os livros que li de Julieta Monginho, também neste, cada frase tem muitas camadas. Lemos uma vez, voltamos atrás e descobrimos outros sentidos. É uma leitura que, embora nos puxe para avançar, nos obriga a alguma serenidade e vagar. Certamente que no encontro de leitoras no Museu do Aljube muito será dito para além deste pouco que aqui fica escrito neste simples texto. Um livro com muitas camadas focando um assunto central que exige resposta urgente e firme.

8 de Abril de 2025

Almerinda Bento

Nota: escrevi este texto a ouvir “From Gardens Where We Feel Secure” de Virginia Astley, que não conhecia e a que o livro faz referência na página 129.

Confusa, talvez, mas o corpo adquirira por mim uma espécie de lucidez que só a ele pertencia. O que me escapava, ele sabia de cor. Sabia-o há muito, muito tempo. Clamava por água e por luz, para sobreviver, como a orquídea. Clamava por repouso e palavras secretas para regressar à vida. Pedi para me porem a tocar Virginia Astley, From Gardens Where We Feel Secure. (…) Os sinos em repique, as teclas como gotas, pétalas, caules tenros ao vento. Esse o meu lugar.

Um caule ao vento, o meu corpo. Um corpo e a sua paisagem, algo com medo de sentir.”