“Acreditar nas feras”, Nastassja Martin, 2019
Se quisesse caracterizar este livro, diria que se trata de um relato autobiográfico de uma antropóloga que, após ter vivido uma situação limite que certamente a vai marcar para o resto dos seus dias, faz uma reflexão sobre a vida, sobre o universo e sobre as relações de poder.Creio que a experiência limite que Nastassja Martin retrata neste “Acreditar nas Feras” não pode estar desligada do facto de, como antropóloga, integrar na sua investigação a etnografia e uma visão animista das coisas que lhe permitem ter em relação ao mundo e à natureza uma atitude particular e diferenciadora. “Há anos que recolho relatos sobre as presenças múltiplas que podem habitar um mesmo corpo para subverter esse conceito de identidade unívoca, uniforme e unidimensional.” (pág. 49). A sua vida tem sido uma constante fuga do conforto da cidade e a busca do conhecimento de povos que estejam mais próximos da natureza, tentando subverter ideias feitas. E face à estranheza por ter sido atacada por um urso e ter sobrevivido – ela é a mulher que sobreviveu - “convertemo-nos num ponto focal de que toda a gente fala, mas que ninguém compreende” (…) “Daí a pressa com que uns e outros querem colar etiquetas, para definir, delimitar, dar uma forma ao acontecimento”. (pág. 95) “Pela minha parte, vou permanecer nesta terra-de-ninguém.” (pág. 96)
Para além de ser tratada como uma cobaia, um objecto de estudo dos estudantes de medicina, fotografada sem que lhe peçam autorização, “desnudada, amarrada, empanturrada, estou na fronteira da humanidade, creio mesmo que no limite do suportável”. (pág. 17), só é desamarrada quando se mostra obediente e bem-comportada, há o mal-estar por se sentir numa sociedade que tem pena dela “Está desfigurada, a pobrezinha” (pág. 48). É clara a denúncia do sistema hospitalar, da competição entre os sistemas russo e francês e dentro do francês, os resquícios da guerra fria e da época soviética. Afinal de contas, ela não só é sobrevivente, mas também estrangeira e, quem sabe, espia.
O livro tem a presença muito forte da mãe/das mães – a de Nastassja que vive em Grenoble e Daria a mãe de Ivan que vive na floresta de Tvaian – que nos surgem como seres fortes, sábios e protectores. Mesmo que as saídas de Nastassja para lugares longínquos e inóspitos a angustiem e preferisse que ela não fosse, a mãe dá-lhe sempre a possibilidade de escolher o caminho que deseja para a sua vida. “A minha mãe viveu outras guerras…”(pág. 24) “A minha mãe chora, mas sabe que, no fundo, essa é a minha única saída.”(…) “A minha mãe mantém-se firme, não fraqueja: a minha mãe dá-se conta de que a sua filha está ligada a uma floresta e tem de mergulhar de novo nela para acabar de se curar no interior”. (Págs. 76 e 77)
Termino com a ideia de um livro belo, mas angustiante e perturbador. Reflectindo sobre a alienação produzida pela nossa civilização, num “mundo que se desmorona ao mesmo tempo em todo o lado, malgrado as aparências.” (Págs. 105 e 106)
13 de Fevereiro de 2024
Almerinda Bento
Acontecimentos marcantes fazem-nos pensar sobre nós próprios e sobre o que nos rodeia. Parece um livro interessante.
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