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quarta-feira, 22 de março de 2023

"Coisas de Loucos" de Catarina Gomes

Livro de não ficção que, muito embora o tema pesado, se lê com muito prazer tal é a forma como retrata vidas de pessoas desconhecidas, que nos parecem próximas, e nos interpela de variadíssimas maneiras. 

Um caixote com alguns pertences de utentes do antigo Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda é o pontapé de saída para uma investigação detalhada sobre essas vidas esquecidas. Loucos? Com alguns distúrbios de personalidade, algumas atitudes menos próprias para a altura e viram-se enclausurados anos e anos. Fácil foi entrar nesses portões do antigo hospital, sair mostrou-se mais complicado. Em quase todos os casos, impossível.

Com uma forma muito respeitosa de abordar o tema da loucura, Catarina Gomes faz uma investigação meticulosa e, para um mero leitor, quase inacreditável. Registos, correspondências trocadas, visitas a familiares e lugares, tudo é abordado com minúcia e detalhe. Quando a loucura representava um estigma para a família, quando os cruéis tratamentos mais pareciam torturas (lobotomias e eletrochoques como solução primeira), sem condições mínimas de higiene, e os doentes eram deixados quase ao abandono (vê-se pelos parcos registos médicos), trazer à vida estas pessoas é um acto de respeito e coragem. A quem interessa conhecer estas vidas? A todos nós, acredito. Gente esquecida, que poderia ser qualquer um se tivéssemos tido o azar de ter vivido nessa altura e de sofrer de qualquer um dos males que os afligiam.

Leopoldina de Almeida, modista (que por morte do marido e sem recursos veio acabar na mendicidade), Noé Galvão (relojoeiro, sofrendo de epilépcia), Simão Proença (lobotomizado), Manuel de Avelar Rodrigues (Capitão de Alto Mar), Valentim (homossexual e bailarino), Clemente (estudante), Ricardo Vinte e Um (proprietário de um armazém de loiças, internado pela PIDE), Jaime Fernandes (cujos desenhos tiveram direito a exposições). Todos, anos e anos, encarcerados. Quase todos até à sua morte (terá havido algum que teve direito a uma vida no exterior após o internamento? Já não me recordo bem mas creio que não!)

Esta leitura torna-se impressionante pelas vidas que desvenda, pela investigação espectacular, quase inacreditável, e pelo tom respeitoso como aborda a vida destas gentes. Também pelo tom fluido e com carácter verídico que faz mergulhar o leitor, de imediato, numa época diferente da actual.

Recomendadíssimo!

Terminado em 15 de Março de 2023

Estrelas: 6*

Sinopse

Uma caixa de objectos abandonados no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda contém as pistas para resgatar do esquecimento a vida de doentes que ao longo de décadas ali permaneceram confinados. Coisas de Loucos teve origem na descoberta acidental de uma caixa de objectos de antigos doentes do primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda.

Catarina Gomes inicia então uma série de investigações para encontrar os «loucos» a quem pertenciam esses objectos abandonados. Nascidos entre o final do século xix e o começo do século xx, muitos foram admitidos em «Rilhafoles», nome original do Bombarda. Os psicofármacos e a terapia ocupacional não tinham ainda sido inventados, e por isso o único «tratamento» que receberam foi o do isolamento.

Mas antes de serem forçadas ao confinamento estas pessoas tiveram família, amores, trabalho, tiveram planos de futuro. São essas suas vidas que Catarina aqui resgata do esquecimento.

Cris

5 comentários:

  1. Este livro é simplesmente espetacular. Está na minha mesinha de cabeceira e agora que penso nisso, nem devia ser leitura antes de ir dormir. Que livro. Vou lendo aos poucos, estou quase a acabar. O "último " que li foi o Ricardo Vinte e Um e achei dos mais marcantes. Que vida enclausurada, com consciência que nunca fez mal a ninguém. Também morreu lá, mas no final saía quando queria e só voltava porque não tinha dinheiro para "recuperar a sua vida".

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    Respostas
    1. É quase inacreditável como a Catarina conseguiu desvendar estas vidas! Gostei tanto de as conhecer!

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    2. Terminado. E que bom que foi fazer render a leitura 🥰

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