Este é um livro que emociona, que comove profundamente, que nos expõe como humanidade, um daqueles livros sobre que tenho dificuldade e até pudor em escrever, talvez usando pinças para não estragar nada. Comovente, por vezes irónico, crítico, nada piegas. Um hino à dignidade, à resistência, à força de vontade para continuar a viver. Um livro maravilhoso e impossível de esquecer.
Maria Alberta Nunes Amado é uma dos setenta residentes no Hotel Paraíso, onde é conhecida por Dona Alberti. Os seus problemas de mobilidade são ultrapassados por diferentes cuidadoras que a transportam no interior da residência, a lavam e vestem, a enfeitam com o colar e os brincos, a acordam, lhe dão os bons dias, a deitam, a esquecem, lhe fazem a higiene sem a ouvir, sem a ver ou lhe responder, lhe fazem as confidências mais íntimas, lhe cantam, lhe afagam as mãos. Tem um gravador Olympus Note Corder DP-20 para onde dita impressões dos dias, das noites, das visitas, do que gosta e não gosta naquela que não é a sua casa, lugar de exílio, e desenha palavras com um pequeno lápis Viarco, usando a mão esquerda e a sua capacidade de extrair dos dias o que sobressai da rotina da instituição que transforma os utentes em peças iguais e sem identidade. Sente saudades das flores que amava no jardim da que foi a sua casa e guarda na bolsa que traz ao peito aquilo que ainda lhe confere algum poder, pertença e intimidade. Pode ser atormentada durante a noite pelo esquecimento do nome de uma capital de um atlas que conhece tão bem, mas resiste a essa entidade que tem vida própria – a noite – que não lhe dá descanso, trazendo-lhe memórias.
O Hotel Paraíso é feito de muitos mundos. Desde a Doutora Noronha que havia sido a estagiária Anita, o senhor Paiva sempre a querer fugir, a Dona Joaninha eternamente apaixonada e que não queria morrer sem saber ler, Lilimunde do Pará com quem Dona Alberti tanto se identifica, a cheirar a bergamota, sobrevivente das máfias da imigração e a viver o seu primeiro amor, o sargento João Almeida que trouxe do exterior um sopro de vida, o senhor Tó alguém que nunca se quis render, Salomé, a “sólida máquina Bosch”, Ali, o marroquino “strong” e “jolie” que acreditou que aqui em Portugal seria respeitado, as senhoras que se sentiam superiores e os homens que persistiam nos seus tiques marialvas. As cuidadoras, os cuidadores chegam e partem. Partem em levas e chegam em levas. Trabalho imigrante, mal pago, precário, indispensável.
A morte era banal no Hotel Paraíso. Os que partem definitivamente, rapidamente são esquecidos e substituídos por novos utentes. Mesmo quando a vontade é desistir e ir, o final de 2019, antes do espectáculo de fogo-de-artifício a partir do terraço do Hotel Paraíso, dá a Dona Alberti uma força para continuar a viver e os telefonemas que faz são o renovar de votos que o Ano do Carro seja um ano de vida e esperança no futuro. “Sinto um entusiasmo pela vida como não sentia há muitos anos” (pág. 408). Os telefonemas foram aos que lhe eram mais caros: ao senhor Frank, vizinho da casa antes do Hotel Paraíso, a Lilimunde, a menina a quem Edu Horvat não soube que deixou uma semente, à Associação da Boa Vontade que tem um voluntário que a visitou e lhe leu dois textos muito importantes e à filha a quem deseja que realize todos os seus sonhos, mesmo que ela Maria Alberta discorde das escolhas da filha.
Infelizmente, o Ano do Carro foi trágico e mortal para muitos dos utentes do Hotel Paraíso, incluindo Dona Alberti tão segura de que a noite não a iria sufocar. E também para Luís Sepúlveda, o autor das duas histórias de “As Rosas de Atacama” que o voluntário da Associação da Boa Vontade lhe lera: a do professor Galvez, “pedagogo da dignidade” e “Cavatori”, que homenageia os cavatori e os/as marmoristas nunca nomeados nas belas estátuas de Carrara.
Transcrevo o epílogo de “Misericórdia”:
“A Maria dos Remédios, minha mãe muito amada, que me pediu que escrevesse esta história.
E a Luís Sepúlveda, meu bom amigo de longa data.
Eles nunca se conheceram, mas estão unidos no tempo das estrelas e cruzam-se no interior destas páginas”
Lídia Jorge
Boliqueime, 15 de Junho de 2022
Almerinda Bento
4 de Março de 2023
Certamente um retrato que se cruza com tantas realidades quando o tempo começa a fugir.
ResponderEliminarLevo a sugestão 👏
ResponderEliminarAinda hoje ouvi falar neste livro num podcast 😊
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