Os Despojos do Dia, Kazuo Ishiguro, 1989
“Os Despojos do Dia”, mais conhecido pela versão cinematográfica interpretada pelo grande Anthony Hopkins e pela grande Emma Thompson, é o primeiro livro que li do escritor britânico Kazuo Ishiguro, autor premiado com o Prémio Nobel da Literatura em 2017. Embora tenha adjectivado os dois actores como grandes, por os conhecer de grandes desempenhos e interpretações em vários filmes, no entanto, não vi este filme e apenas repito apreciações positivas de amigos e amigas que os viram a desempenhar os papéis de Mr. Stevens e de Miss Kenton, uma antiga governanta da casa onde o primeiro era mordomo.
Mr. Stevens, o narrador, é o mordomo de uma casa senhorial e responsável pelo pessoal. O actual patrão – Mr. Farraday – faz-lhe uma proposta, para ele impensável e irrealista, de lhe emprestar o seu Ford e aproveitar para percorrer o país, enquanto ele estiver ausente nos Estados Unidos para tratar de assuntos pessoais. A ideia fica-lhe a magicar e acaba por aceitá-la, percebendo-se desde o princípio que o seu destino será a região de Devon/Cornualha, local para onde foi viver Miss Kenton há vinte anos quando se casou.
O narrador dirige-se ao leitor/a conduzindo-o/a na narrativa. Escolhe fazer essa viagem seguindo os caminhos secundários e não as estradas principais o que lhe permite fazer paragens e encontrar pessoas invulgares e paisagens únicas, mas, sobretudo, aquela é uma viagem interior, uma reflexão pelas memórias da vida, da sua profissão e das escolhas que fez. Quando uma vida é exclusivamente pautada por conceitos como lealdade, serviço, sentido do dever, dignidade ou honra, em que nunca se fez escolhas próprias porque se depositou a vida e o destino nas mãos de alguém (neste caso um patrão) e em que os sentimentos e as emoções são reprimidos, apagados ou secundarizados, possivelmente ficar-se-á cego e impossibilitado de seguir outro caminho. Com efeito, ele nunca consegue cortar com o passado e a reflexão que faz sobre o antigo patrão – Lord Darlington – “os seus esforços foram errados, ou mesmo tolos”, ou que a sua vida e trabalho foram “um lamentável desperdício”, Mr. Stevens não consegue fazê-la para si próprio.
Percebe-se que Mr. Stevens quer reencontrar Miss Kenton, actualmente Mrs. Benn por casamento, remediar algo do passado que ficou por encerrar, mas toda a subtileza da escrita e a consistência da personagem e da sua personalidade permitem-nos antever o desfecho daquela viagem.
“Os Despojos do Dia” é um livro maravilhoso. Algumas descrições fizeram-me lembrar “Contos Sublimes” de Hermann Hesse ou “As Velas ardem até ao Fim” de Sándor Márai. Gostei da forma como as personagens – sobretudo o mordomo Stevens – nos são apresentadas com grande subtileza, como a narrativa está repleta de nuances, nos vai desvendando pormenores decisivos e há uma espécie de filtro que faz desta obra um romance de grande qualidade. Grande trabalho de Fernanda Pinto Rodrigues, tradutora falecida em 2013, com uma vida dedicada à tradução de grandes nomes da literatura anglo-saxónica e que foi galardoada em 1995 com o Grande Prémio de Tradução.
18 de Janeiro de 2018
Almerinda Bento
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