"O melhor presente que se pode dar a alguém é impedi-lo de sofrer." (p. 135)
Em boa hora a editora Cavalo de Ferro recuperou “A Porta” da húngara Magda Szabó (1917-2007,) reeditando-o no mês de Setembro! Este romance intenso, tanto quanto electrizante deixa o leitor desconcertado e inquieto ao longo de toda a narrativa.
Emerence, a personagem principal, austera no vestir, no falar e nas atitudes, capta a atenção do leitor desde a sua aparição, deixando este num estado de delírio e de estupefacção e, outras vezes, de incredulidade. Emerence era porteira de um prédio de um bairro na periferia de Budapeste e era conhecida pela sua força física e por ser exímia na forma como desempenhava as suas funções. Emerence trabalhava igualmente na lida da casa de várias famílias, mas é com Magda, a escritora, que ficamos a conhecer a vida e a integridade de Emerence, dado que esta empregada exerceu funções em sua casa durante quase duas décadas.
Sempre dura, quase sempre com um discurso próximo da crueldade, o leitor quase é levado a pensar que Emerence não tem quaisquer sentimentos, nem expectativas no que concerne à raça humana.
Passado no segundo após-guerra, Magda, a narradora-escritora, dá-nos conta do que foi construindo em matéria de conhecimento sobre Emerence. A sua história, os seus segredos, as razões, no fundo, da sua rigidez e inflexibilidade perante tudo e todos.
Para quem tudo perdeu durante o período nazi (antes e durante a guerra) e nada beneficiando, nem bendizendo dos russos (depois da guerra), Emerence arrasa as duas ditaduras, sem clemência e sem pudor, reduzindo o mundo ou a sociedade, melhor dizendo, a duas categorias, “aqueles que varrem e os que mandam varrer”. Banidas e extinguidas com um ódio visceral, as ditaduras de extrema-direita e de extrema-esquerda, Emerence reconstrói a sua vida com uma tal rigidez cristã, para lá dos valores estabelecidos pela moral calvinista, edificando para si própria uma nova ditadura como forma de se proteger de tudo e de todos. Durante décadas, Emerence impôs sobre si própria este modelo inflexível, dentro da sua casa, a “cidade proibida” a que Magda várias vezes alude e que ninguém entra. “A Porta” desta “cidade proibida” é o que separa os dois mundos, a vida dos outros e a de Emerence, com os seus objectos e os seus gatos. E Viola, o cão, cuja guarda era partilhada com Magda e o marido. A bem da verdade, Viola estava de tal forma “educado” que era o discípulo de Emerence naquela que era a sua conduta austera. Ninguém, mas absolutamente ninguém, é convidado a passar para lá da porta, nem se deve aproximar. Emerence ataca com palavras e com o machado, se for caso disso…
Mas há segredos por contar, há telhados de vidro, há fragilidades, medos, no fundo… Emerence por muito dura e inflexível perante si mesma e os outros, não deixa de ser vítima do tempo, o deus chronos, que, na verdade, é o único deus que respeita. "Se Emerence acreditava em algum facto, era no tempo, na sua mitologia pessoal, o Tempo era a mó de um moinho eterno, cuja moega vazava os acontecimentos da vida no saco que cada um trazia. Ninguém lhe escapava, segundo a crença de Emerence, que estava persuadida, mas sem compreender, que moía também o trigo dos mortos e enchia o seu saco, só que havia alguém que trazia a farinha às costas para se fazer o pão." (p. 126)
E Emerence adoece… Magda e a vizinhança percebem que a velha senhora deixa de conseguir estar sozinha, precisando de cuidados médicos, hospitalares. Magda vê-se a braços com uma situação que lhe provocará temor e tremor, além de um sentimento de culpa e de remorsos, tendo em consideração o conflito moral que dali nasce. A doença de Emerence traz o desabar de todo o mundo, o universo que esta criou, mas também a vergonha perante a possibilidade de descoberta por parte dos vizinhos. É este jogo de verdade-mentira com que a vizinhança passa a lidar com Emerence como forma ou tentativa de a manter viva. Mas por quanto tempo? Mas não se faz esperar um desabafo final, uma última tortura da parte de Emerence porque esta não cede assim tão facilmente, é obstinada e orgulhosa. Magda tem ainda de ser atacada, uma vez mais, face à iminência de toda uma comunidade descobrir em que moldes funcionava o seu mundo, a sua ideologia, a sua ditadura. "— Ora, vá-se embora — disse Emerence, calmamente. — Não comprou casa e, todavia, pedi-lhe, e quantos tesouros lhe destinava para a mobilar; não teve filhos, e, todavia, prometi-lhe que os educaria. Reponha o aviso na porta, não quero ver ninguém que foi testemunha da minha vergonha. Se me tivesse deixado morrer, como eu estava decidida quando compreendi que já não seria capaz de efectuar um verdadeiro trabalho, eu velaria por si além-túmulo, mas agora já não suporto a sua presença. Vá-se embora." (p. 215)
Sentimentos de culpa, remorsos, inquietação, perturbação são estados de espírito que Magda descreve sobre a relação de quase vinte anos com Emerence, mas, simultaneamente, o sentimento de gratidão da parte de alguém, frágil perante a imagem austera, que deu tanto a uma comunidade e que, no fundo, era o melhor exemplo de cristã sem que frequentasse a igreja aos domingos para de livrar dos pecados.
“A Porta” de Magda Szabó é indubitavelmente uma obra-prima da literatura contemporânea, em que dificilmente esqueceremos Emerence, para o bem e para o mal. É, pois, um romance que conduz o leitor a reposicionar-se perante os valores instituídos pela sociedade, dando a ideia da possibilidade de utopias, quando não existem, mas a crença de um mundo melhor através de pessoas cuja personalidade, temperamento e valores, as torna sólidas.
Ao longo da obra, compreendemos algumas das razões pelas quais Magda Szabó esteve impedida de publicar no seu país, quando a Hungria era parte integrante da “Cortina de Ferro”. Não há ditadura que não apresente fragilidades, que não cometa atrocidades, que não iniba os cidadãos de pensar, criticar. Não há ditadura que, na devida altura não desabe, sendo arrasada, inevitavelmente, transformando-se num mundo novo, numa nova ordem, reflexo do motor da História.
“A Porta”, publicada em 1987, é a obra que conduz ao reconhecimento da escritora em termos internacionais, sendo o livro publicado em mais de 30 países. Em 2013, o romance foi adaptado ao cinema, pelo realizador Istvan Szabó, tendo Helen Mirren o papel de Emerence.
Texto da autoria de Jorge Navarro
Síntese oportuna e muito interessante nas pistas que sugere para ousar abrir a porta. É um incentivo à compra do livro que, entretanto, já o fiz!
ResponderEliminarMuito obrigado, cara Fátima! Estou certo de que irá apreciar a leitura.
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