A reedição do texto “Viagem à União Soviética” de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013) segue em linha com a comemoração do centenário da Revolução de Outubro. Publicado inicialmente em 1973, a Cavalo de Ferro recupera um texto do escritor português, reflectindo as suas impressões relativas à viagem à União Soviética que teve lugar no início dos anos 70, juntamente com Fernando Namora e Alberto Ferreira.
O texto pode ser inscrito no contexto de literatura de viagem ou simplesmente ser apreciado como um pequeno ensaio em que o autor passa a escrito as suas impressões sobre a sua experiência de três semanas nalguns dos pontos mais emblemáticos daquele que é o maior país do mundo e que, à data, constituía a grande referência em matéria de comunismo, ao mesmo tempo que se tratava de um país pouco visitado por turistas e quando tal acontecia era fortemente vigiado e articulado em consonância com o Partido Comunista.Se ainda hoje é difícil ter uma percepção clara e objectiva sobre o que é e como funciona a Federação Russa, nos anos setenta, para quem vivia no Ocidente, e estando em vigor a chamada “Política de Blocos”, era ainda mais complexo não só visitar a região, como deambular em pontos muito distantes geograficamente uns dos outros, ainda que acompanhado de um guia afecto ao regime de então. Alguns dos locais referenciados em destaque por Urbano Tavares Rodrigues são Moscovo, Leninegrado (S. Petersburgo a
partir de 1991), Tashkent, no Uzbequistão, a Sibéria Oriental, além de outros menos conhecidos e menos visitados.
Com o presente texto, percebemos de imediato a orientação política do escritor, em linha com o comunismo, sem, contudo, que no decurso das ideias expressas, tenha como finalidade propor o comunismo em detrimento do capitalismo. Urbano Tavares Rodrigues pretende conhecer a realidade soviética, a forma como as pessoas vivem em pontos distintos daquele país que constitui um mundo fechado sobre si próprio. Ainda que a União Soviética seja apresentada como um país melhor quando comparado com os países do Ocidente, Urbano Tavares Rodrigues não faz a apologia do comunismo como o rumo que deverá ser tomado nos anos setenta. O próprio autor salvaguarda que as suas opiniões, aquilo que passa a escrito, reflecte somente aquilo que percepcionou durante a sua visita, não impondo as suas ideias como verdades absolutas, mas reconhecendo-lhes o carácter subjectivo.
Urbano Tavares Rodrigues, no decurso deste seu périplo, derruba alguns mitos que ficaram associados aos trabalhos forçados. A Oriente, na Sibéria, desenvolvem-se novas cidades ligadas às centrais hidroeléctricas, símbolo de desenvolvimento económico da URSS em oposição à ideia de deportação dos inimigos políticos que eram deportados para os campos de trabalhos forçados, os gulag. “Mas hoje, para os soviéticos, a palavra «Sibéria» significa combate e vitória, triunfo sobre a natureza (mas com a mesma natureza viva, sem a aniquilar). Fábricas a elevarem-se aqui e além, sobretudo de celulose, sanatórios, bairros que, quase de um mês para o outro, mudam o rosto das povoações, escolas, todos os equipamentos da civilização. O clima é duro no Inverno, mas há compensações. Os estímulos morais não são palavras vãs na URSS.” (pp. 60-61)
As creches, integradas nos complexos fabris, constituíam uma forma de apoio às famílias e, de facto, de acordo com o observado, as condições de outrora não deixam de ser invejáveis à luz das condições existentes actualmente, em Portugal, por exemplo. Só não é referido qual o preço que as populações tinham de pagar face à ideia de sujeição e ausência de liberdade e, não raras vezes, as doenças do foro respiratório e oncológico pagavam-se muito caro face à ideia de desenvolver o país, de o tornar mais forte.
A ideia de a população ter mais dias de férias e a oferta de “pacotes turísticos” em sanatórios, por exemplo, era a forma (inevitável) de manter a população sujeita a preceitos políticos sem precedentes, fazendo com que as pessoas ficassem gradualmente debilitadas do ponto de vista da saúde e com uma esperança de vida reduzida.
Outros aspectos igualmente interessantes têm a ver com o sistema de reforma associado às cooperativas como forma de planear a velhice.
Também a compra da habitação a preços irrisórios, com rendas pagas ao Estado, por períodos muito reduzidos quando comparados com as práticas do Ocidente a este respeito, é algo que, aparentemente, é invejável, não fosse, ainda hoje, nas principais cidades russas, Moscovo e S. Petersburgo, a falta de habitação um dos grandes problemas do país.
Outro dos aspectos que é referido face à dicotomia Ocidente versus URSS, face aos sistemas económicos distintos, é a destruição dos stocks imposta pelo capitalismo como forma de fomentar a produção industrial em linha com a ideia de uma sociedade de consumo fortemente estimulada. Já na União Soviética, o desperdício não se concebe, daí que as tendências da moda no que concerne ao vestuário, por exemplo, chegam, regra geral, àquelas paragens mais tardiamente. “Mas será isso importante?” (p. 29)
Poderíamos enumerar mais exemplos, mais histórias, mais alguns relatos de Urbano Tavares Rodrigues, contudo, ficará para o leitor o prazer da leitura para que também possa tirar as suas conclusões.
Em boa hora “Viagem à União Soviética” foi reeditada e, independentemente do centenário da Revolução de Outubro, o importante, creio, que é fazermos o balanço sobre ganhos e perdas após o desmantelamento da União Soviética, mas também compreendermos que o caminho do Ocidente entrou em ruptura com o capitalismo desenfreado, desregrado.
O comunismo deu o que tinha a dar enquanto ideologia (e não só), não esquecendo que durante anos a fio, a União Soviética tentava criar a ilusão de um mundo perfeito, mas oco, afinal de contas.
Por seu turno, o capitalismo também entrou em colapso com as suas sucessivas crises, arrastando milhões de pessoas para a miséria, na sequência de as democracias terem sido seduzidas e depois escravizadas face ao domínio e poder do capital. Um meio-termo talvez fosse o caminho a seguir, através da implementação de políticas económicas e sociais equilibradas em consonância com o meio ambiente. O futuro o dirá…
Texto da autoria de Jorge Navarro
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