Este não é um romance. É um relato de vida. Um relato de uma sobrevivente e um grito de esperança. Um relato duro cuja leitura, por vezes, temos de parar para respirar…
Quando, sobretudo desde 2014 se começa a falar da crise dos refugiados e somos diariamente confrontados com imagens de milhares de homens, mulheres e crianças que chegam exaustos à Europa, movidos pela esperança de abrigo e de um recomeço, depois de terem sido obrigados a fugir da guerra, da violência e da fome, como reagimos? Que sentimentos aquelas multidões nos provocam? O que vemos: uma multidão indistinta ou pessoas concretas com nome, com uma história de vida, com família, com um passado, com sentimentos? Até que ponto a repetição das mesmas imagens, por muito pavorosas que sejam, não está a criar em nós tão longe dessa guerra, um sentimento de impotência, de indiferença, de desumanização? Cidades em escombros irreconhecíveis, barcos apinhados de gente à mercê de máfias de traficantes, corpos inchados a boiar num mar que se transformou num cemitério, cadáveres em decomposição arremessados para as praias paradisíacas das ilhas gregas, crianças à deriva separadas dos familiares, mulheres grávidas que arriscaram tudo, gente doente, desidratada, que deixou a sua vida para trás mas que ainda acredita que há uma vida depois de atravessado aquele mar.
Melissa Fleming, a autora deste livro, conheceu inúmeras histórias de refugiados com que se cruzou na sua actividade. Um dia conheceu Doaa, um caso de sobrevivência e altruísmo, muito mediatizado na altura pelo facto de ser uma de onze sobreviventes em quinhentas pessoas numa viagem fatídica desde o Egipto até Itália. Acompanhada de Bassem, o noivo, o seu destino era a Suécia onde pensavam casar e constituir família. Após várias tentativas frustradas, finalmente conseguiram embarcar numa viagem dramática como são todas as viagens que diariamente são empreendidas por milhares de seres humanos provenientes da Síria, da Palestina, do Sudão, da Somália, da Eritreia. Mas o que tornou o caso de Doaa um caso para o qual os media olharam foi o facto de esta jovem franzina ter conseguido sobreviver e lutado pela sobrevivência de duas crianças cujos familiares morreram afogados. Em quinhentas pessoas, só onze sobreviveram entre as quais Doaa, Malak uma bebé palestina de 9 meses e Masa com 18 meses.
Melissa Fleming, na sua posição privilegiada de directora de Comunicação e porta-voz do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, sentiu que tinha de dar voz a esta mulher sobrevivente. Doaa Al Zamel, 19 anos, refugiada síria, sozinha na Europa para onde tinha ido por insistência do noivo que morrera afogado, longe dos pais e irmãos e irmãs refugiados no Egipto, na Jordânia e no Líbano. Doaa podia ser qualquer um/a de nós. Também ela tinha tido uma infância feliz, no seio de uma família síria tradicional a viver na cidade de Daraa. Teimosa, sonhava ser independente e não queria estar ligada à sujeição de uma figura masculina como é tradicional na sociedade síria. Doaa tinha 16 anos quando a sua cidade foi cercada pelas forças fiéis ao presidente Assad, aquele de quem a população desejosa de liberdade esperava uma outra atitude de maior abertura e democracia, muito diferente do regime do pai Hafez al-Assad que mantinha o país em estado de emergência desde 1963.
A vontade de Doaa de se juntar aos manifestantes que exigiam reformas democráticas foi abruptamente barrada pela violência do cerco a Daraa. O arbítrio dos guardas fiéis ao regime de Assad, as buscas constantes às casas, as violações, os raptos e a violência dirigida sobretudo às mulheres e às meninas levam a família de Doaa, como muitos milhares de outras famílias a abandonar as suas casas e a fugir para a Jordânia, Líbano e para o Egipto. A guerra na Síria obrigou metade da população a abandonar as suas casas, mais de cinco milhões refugiaram-se no estrangeiro, sobretudo nos países vizinhos e mais de seis milhões e meio foram obrigados a deslocar-se dentro do próprio país, pelo que em 2016 a Síria era a maior população de deslocados do mundo.
Se os países vizinhos que têm acolhido os refugiados sírios e palestinos têm sido de uma imensa generosidade e solidariedade, repartindo o pouco que têm, a primeira impressão de bom acolhimento e solidariedade dos egípcios em relação à família Al Zamel também vai alterar-se. O Egipto vive também uma situação de grande instabilidade. As mudanças prometidas por Morsi, após o derrube de Mubarak não acontecem. Morsi é deposto na sequência de violentas manifestações e a atitude dos egípcios face aos refugiados sírios altera-se. O acolhimento deu lugar à ameaça. A esperança de vida na Síria que tinha sido deixada para trás e que se afigurava cada vez mais remota, com o surgimento de forças como o Estado Islâmico, torna aquele região do mundo um verdadeiro caos. “Não há futuro para nós!” era o pensamento de Doaa. Era o pensamento de todos os refugiados sírios espalhados por aqueles países vizinhos.
O desespero leva a olhar para o Mediterrâneo como a única porta para a salvação.
O desespero, a solidariedade, a fé e a esperança são os traços fortes deste livro.
Doaa é um caso de sobrevivência no meio de milhões e é muito positivo que possa ser relatado e amplamente difundido como sinal da enorme capacidade de resistência do ser humano. Mas e, sobretudo, penso que neste livro falta uma abordagem sobre a origem da guerra, das guerras e do dinheiro que corre e que se alimenta delas e que faz com que as guerras não tenham fim. Porque as guerras têm donos que vivem delas. Só de forma muito leve há uma referência aos muros de arame farpado que se levantam na Europa e aos milhões com que a UE subsidia o governo da Turquia para conter os refugiados que chegam e para os recambiar aos países de origem de onde fogem da fome, da guerra e da violência.
Os refugiados não são refugiados por gosto. São refugiados porque foram obrigados a sê-lo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra o direito à deslocação do território de origem por motivos de direito à vida e à integridade física.
Mouriscas, Agosto de 2017
Almerinda Bento
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