O primeiro capítulo - Porta de Entrada – é a primeira das várias divisões da casa na Outra Banda que os pais da narradora – Maria Luísa – compraram quando regressaram de Moçambique. Cada capítulo uma divisão, um território, um mundo de memórias, de afectos, de marcas da personalidade dos que lá habitam. A “mamã” e o “papá”, o David, a cadela, as mobílias de Moçambique que atravancam as divisões, impossíveis de ser transpostas dum espaço amplo lá longe em África para um apartamento do subúrbio de Lisboa, já para não falar do filodendro que invade a sala de estar… todos os detalhes que nos permitem imaginar as divisões da casa, até ao hall, último capítulo e afinal o local de todas as passagens, o único espaço da casa que não pode ser evitado.
Como é previsível pelo próprio título “A Gorda”, a questão do corpo, que tem de ser belo para ser socialmente aceitável, é o centro deste livro. Senão, o ferrete da gordura/fealdade discrimina e menoriza na escola, nas festas, nas amizades desde criança e ao longo da vida. Como se sobrevive quando se é apelidado de “baleia”, “baleia azul”, “monstro”, “orca a fúria dos mares”, “bola de Berlim”, “barril de sebo”, “boneco Michelin” ou quando os amigos do namorado o gozam por namorar aquela gorda? De que lhe valia ser a melhor aluna, se a própria colega do colégio, um ideal de beleza e também ela retornada, a tratava como criada? Feia, gorda e míope, longe dos pais, primeiro a viver com uma avó e depois com uma tia, antes de ficar interna num colégio, é na fase da adolescência que estes aspectos se tornam mais críticos. O segredo é sobreviver quando se vê como “um trambolho acima do peso. Como disfarçar a carne que sai de mim por todo o lado? Como esconder o corpo?” É uma luta contra o corpo, contra a sociedade que discrimina, persistentemente ao longo da vida, resistindo, sobrevivendo, não vergando.
Livro corajoso, porque a narradora “despe-se”, expõe os seus sentimentos, as suas frustrações e desilusões amorosas. O grande vazio com o fim do namoro que só a escrita consegue apaziguar. “Sem escrita não podia haver vida” diz Maria Luísa a certa altura. Mas divertido, com descrições e linguagem viva, directa e extremamente divertida, em que seguimos o crescimento e a vida de Maria Luísa com referências à sociedade da altura, às telenovelas da moda, ao desastre de Camarate com a morte de Sá Carneiro e Snu Abecassis, a música e os grupos da época; a política dos anos 80 com referências a Mário Soares, Freitas do Amaral e Maria de Lurdes Pintasilgo, o desastre de Chernobyl e a queda das Torres Gémeas. E mais tarde, os anos de Sócrates em que “o ensino público é destruído a golpes de picareta”. A autora não se poupa a criticar o mal-estar que invadiu as escolas e que persiste nos dias de hoje com o excesso de burocracia e de papelada que as desumanizou e perverteu. E por fim, o ano de 2014 em que Portugal vive sufocado pela ingerência da Troika. Estas referências dão uma grande vivacidade às descrições que ficam enquadradas num pano de fundo histórico em que os/as leitores/as se identificam e revêem.
A presença forte da “mamã” e a ambivalência dos sentimentos que a sua personalidade gera quando Maria Luísa fala dela: amor/desamor, liberdade/sujeição, tão bem expresso a certa altura neste desabafo: “Morre”! Não morras!” É essa complexidade de sentimentos que me leva a considerar este livro muito sincero e profundamente humano, surpreendente porque não permite que o/a leitor/a se acomode a clichés ou cenários pré-concebidos.
Maria Luísa supera o preconceito social relativamente à sua condição física, assumindo-a positivamente e aceitando-a como marca própria. Não desiste dos seus sonhos e luta até ao fim para ser amada. Luta pelo direito à felicidade e essa é possivelmente uma das conclusões que “A Gorda” nos permite tirar: a busca da felicidade é algo que está em cada um de nós e que por muito difícil que seja alcançá-la, não se deve desistir nunca.
Obrigada Isabela Figueiredo!
Julho de 17
Almerinda Bento
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