Pela Brecha
Crescer ora sentado ao piano ora sentado a ler dará para duas posições de coluna, muitas opções de banda sonora e inúmeras vidas arrancadas ao papel. Mas, manifestamente, não será a condição de sentado que impedirá o trilhar de milhas e, muito menos, o tipo de escolha que se dá ao caminho. Mais tarde, quis a providência sentar-me , de novo, a usar sentidos para ouvir a banda sonora de outros e, também, as suas estórias e caminhos. O passado a galgar presente, sempre. A fazer futuro. Mas dessas escolhas faz-se, também, a memória e o molde. E habituamo-nos a coisas que, mais tarde, nos podem
faltar, mesmo que primemos pela verticalidade.
Ouvir pela primeira vez aquela rapsódia de Brahms será algo da mesmíssima qualidade do que olhar pela primeira vez a face de Gagula, na tradução melhorada d´ As Minas de Salomão, pela mão do nosso Eça; ou de naufragar com Roberto na nau vazia d´A Ilha do dia antes, de Umberto Eco; chegar ao grande vazio no centro da Terra de Verne; ou de perdermo-nos nos mundos mágicos de Borges. E em todas estas venturas a mensagem, o caminho subterrâneo abaixo das letras: a metáfora. Habituei-me a isso. Tornei-me, confesso, um dependente. E a coisa era, e é, grave.
Bebedor compulsivo de todas as fontes, sem que a sede se aplacasse nunca, fui-me aos livros, todos, aos vinis, todos, e por cada nova toma, aquela sensação falsa de sede morta pelo trago. A mesma que engana o sujeito que atravessa o deserto e bebe da miragem. Por vezes a miragem fazia-se verdadeiro lago, doce e deitado, e por lá me ficava, à margem de muita coisa boa que se escreve, em guerrilha ou nas linhas da frente: calcorreando o Danúbio de Claudio Magris; entrando no aterrador poço dos Homens imprudentemente poéticos, de Valter Hugo Mãe; vivendo a insónia do musicólogo ou viajando com Miguel ngelo nos livros de Mathias Énard, e por tantas coisas de tantos outros - faz-se boa literatura. O campo musical sofrerá, por exemplo, muito mais. Outras artes, também.
“O Homem, despeitado por anos de desejos e de pulsões, considera violar a gretadura (…) Acabou por se convencer da única hipótese viável, conquanto absurda ao ponto do inacreditável: aquilo dava para outra banda.”
Mas, mesmo assim, faltava-me um particular sentido de aventura, de descoberta. Daquela a que me habituara. Aquela de que me fizera dependente. Pensei como pensará qualquer adulto: que isso era mais uma das coisas perdidas para o lugar exclusivo da infância. Mas no piano rompia teclas pela noite a ver se nascia melodia original. E, por vezes, a sorte gracejava. Noutras, os vizinhos batiam pé - mentira, são bons e pacientes, os vizinhos.
A minha Mãe diz que me contava estórias. Eu pedia-lhe. Lembro-me de as pedir. (Aliás, penso que será ainda o mesmo movimento que me leva à livraria, aos sábados de manhã). Diz a minha Mãe que, a dada altura, comecei eu a contar-lhe estórias. E ali estava: toda a vida montada no egoísmo de querer que todo o mundo coubesse numa estória qualquer, mas que fosse vivida em primeira mão por mim. Porque não o mesmo na escrita? Ser egoísta. Escrever um livro para mim, para a minha própria dependência. Plantar papoilas e render-me ao ópio caseiro de se escrever o que se quer ler. No fundo devemos começar sempre por um egoísmo e depois desfragmentá-lo na relação com os outros. Ter amor-próprio assegurado e, só depois, amor pelo outro. Isto nunca será assim tão estanque, mas a ideia é a de que só nos completamos na relação, primeiro na relação connosco, depois na com o outro. A viagem que se faça sozinho é esquecida mais depressa. A memória serve para fazer pontes entre nós. A escrita, a narrativa, também.
Por anos ouvi, auscultando com cuidado, a verdade nas pessoas - tenho instrumento e espaço próprios para isso; deu-me isso, a psicologia. E dei-me conta da mesma sede nas pessoas. Um rápido desvio: Há dias, num dia de sol precoce, fui à praia maior de Água d´Alto, na ilha, e sentei-me a ver o horizonte virado ao sul. Assaltou-me um só pensamento: em dias de antanho, gente metia-se nisto - no Mar - para ir naquela direcção ou noutra, sem destino que se visse. Às vezes sonhando-o, outras nem isso. O que substitui essa pulsão, nestas nossas vidas ditas modernas? O que equivale a lançar-se desta maneira a uma linha horizontal enquanto nos tentamos manter verticais, antes do fim, esse sim horizontal? Acredito profundamente que somos criaturas que evoluímos graças a um instinto que está amorfo, sufocado, enfim, a morrer à sede em cada um de nós. E isto é perigoso. Muito. Sem isto, morremos sem saber, e por cá continuamos sem verdadeira continuidade.
“…entristecíamo-nos com a perda de uma coisa esquecida, como quando não nos lembramos do que procuramos e desistimos sem saber do quê, ou como criaturas com buracos indistintos de forma, sem saber como e com quê os encher. Criaturas do nada. Viventes de uma paz absorta. Zeladores da preservação de não sei o quê.”
A resistência a isto, o horizonte moderno, faz-se muitas vezes no abrir de um livro, no virar de uma página, sem saber qual a que se segue, para onde nos leva a estória. Parecerá isto, um lugar-comum, mas os lugares, quando comuns, quando abundam, é porque têm em si uma verdade demasiado expressa. E, não raras vezes, quando tratamos algo de sublime como comum, esse deixa de rutilar; desviamos a lanterna da superfície reflectora, o sol da lua, e esta deixa de existir. O sublime escurece e o medíocre toma-lhe o lugar. Habituamo-nos a luzes menores, a iluminações menores, e dizemos que o que vemos é o que há a ver. Mas o instinto mantém-se. E esse instinto, a descoberta, por ser algo próprio do acto evolutivo, tem de ser de algo que nos faça crescer, e que nos agigante. Descobrir a mediocridade apenas encolhe ou encalha. E, por isso, temos de descobrir, explorar e conquistar o sublime, o belo, o moralmente superior, o ideal; repare-se que são coisas e até palavras que começam a desaparecer - criaturas extintas da gíria. Qual foi a última vez que se ouviu, num telejornal, a palavra ideal? Estamos a viver um contra-iluminismo, como nos diz o Martin Amis.
Talvez, por tudo isto, começo a ver temas teimosos no que escrevo, coisas que me parecem ser lança de D. Quixote conta moinhos. Resistências saudáveis. Mas suponho que é esse o caminho: O escritor deve deixar-se dominar pelas suas obsessões. É a única maneira de se deixar dominar pela estória. Pelos personagens. Depois torna-se apenas num instrumento desta gente toda, desta vontade toda. Têm sido isto, os livros, estas minhas metanóias. Um terapeuta torna-se, por imposição da solidão e por via de feia metamorfose, numa ilha; a utopia meritocrática tenta impor-se à invasão das Bestas; um grupo de revolucionários escreve um manifesto numa Lisboa galgada pelo Tejo; um Homem aborrece-se e entra pela brecha que se rompe na parede do quarto. Todos inconformados, todos em desassossego. É isto: desassossego, e a esperança de sossegar, mesmo que para esse verbo se reserve apenas o fim.
“Pela primeira vez naquela centúria de tempos, nasce, em abrolho, um Explorador (…), o órgão vestigial da abelhudice, pela primeira vez em anos, secreta e excreta e até mesmo pulsa.”
Nós todos somos o desassossegado personagem de A Brecha. Todos partilhamos a sua sede. E, invariavelmente, todos temos a nossa, sempre muito particular, brecha por onde nos lançar ao desconhecido e ao desafio. Se tivesse um desejo para este livro, seria que as suas páginas fossem pavio e chispa para uma chama de fogo grego. Aquela prometida como eterna. A labareda de querer galgar o Olimpo, de lá fazer sair velhos inquilinos, e de tomar o zénite - seja isso o que for - como nosso; apenas para, ainda de pira feita, procurar por algo mais acima.
João Pedro Porto
Ponta Delgada, 21 de Abril de 2017
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