A Jugoslávia que durante décadas esteve sob os desígnios do Marechal Tito tendo como pano de fundo o comunismo fora da alçada do regime soviético, rapidamente resvalou para o descalabro após a morte do governante. Antigas contendas que constituíam um barril de pólvora entre etnias e religiões diferentes nos Balcãs, rapidamente contribuíram para o reaparecimento de nacionalismos que levaram à morte e tortura de milhares de vítimas, um pouco por todo aquele país que já de si era um mosaico cultural à beira da ruptura.
Sara Nović centra a narrativa numa família de Zagreb, cuja personagem principal é Ana Jurić, uma menina de dez anos, que gosta de jogar futebol e de andar de calções. O seu melhor amigo é Luka, um rapaz da mesma idade, com quem brinca e explora os principais pontos da capital croata. Para ambas as crianças, é natural terem famílias e amigos onde convivem católicos, ortodoxos e muçulmanos. Há uma consciência de pertença pela diferença que torna aquele povo, aquele país, como algo único na Europa. Mas estas crianças percebem que algo não está bem. Zagreb vive períodos de tensão em que as hostilidades entre croatas e sérvios aumentam, numa altura em que rebenta a guerra. Os bens alimentares começam a faltar nas lojas, a insegurança aumenta, a população, os que podem, tentam sair da região, para países vizinhos, na medida do possível.
Há dados interessantíssimos que Sara Nović descreve sobre Zagreb, respeitando o conhecimento histórico, mas contribuindo com dados que, graças à literatura, contribuem para que o leitor tenha uma visão, uma perspectiva mais rica sobre a guerra da Jugoslávia. Dados, informações que do ponto de vista histórico são considerados de natureza subjectiva ou não importantes de todo, mas que num romance são importantes para a compreensão de uma tão complexa região e guerra também.
Alternando a narrativa entre a Croácia e os EUA, Sara Nović vai unindo o passado e o presente na tentativa de Ana Jurić encontrar um ponto de equilíbrio no que respeita à procura ou (re)descoberta da sua identidade. O leitor fica a perceber alguns dos traumas de guerra por que passaram tantos jovens, como que por necessidade e até em situações extremas de vida ou de morte, num contexto de guerra, mas que a consciência, mais tarde ou mais cedo, aviva episódios concretos que tiveram lugar num dado momento da vida e que nos faz reposicionar a vida, ética e moralmente, na relação com os outros e até com o país e a História.
Esta relação entre o passado e o presente tem W. G. Sebald como fio condutor. Na descoberta e encantamento pela literatura, Ana Jurić descobre o escritor alemão W. G. Sebald, acabando por se rever na sua escrita no que concerne à questão da memória e a forma como esta condiciona a vida presente. Há uma expressão interessantíssima que alude ao conjunto das obras de W. G. Sebald quando é referido o “feitiço do desespero” (p. 97), expressão que, de certa forma, vai contribuir para que Ana Jurić tenha a coragem de regressar à sua Zagreb natal e enfrentar a verdade, o que ficou da guerra, reencontrar vivos e apaziguar-se com o seu passado, assim como com a tragédia que assolou a sua família.
Ainda que a história seja ficcionada, Sara Nović respeita a realidade histórica conduzindo o leitor pelos caminhos horríveis da guerra e da loucura dos homens quando estes perdem a noção de respeito pela vida e a razão, deixando à flor da pele o homem natural capaz de se transformar num monstro.
Livros como “Rapariga em Guerra” contribuem para a reflexão sobre a incapacidade de o homem gerir as diferenças étnicas e religiosas, resvalando para os nacionalismos exacerbados que conduzem a guerras sem sentido vitimando milhares de pessoas inocentes. A guerra da Jugoslávia que teve lugar na última década do século XX foi a guerra mais cruel depois da 2ª Guerra Mundial e que teve o seu palco em solo europeu com a agravante de o Mundo poder assistir aos confrontos bélicos e à mortandade nos Balcãs como se tratasse de um filme, pese embora os personagens fossem bem reais.
Excertos:
“Fomos para nossa casa e, na televisão, vi o que significava a queda de uma cidade. As imagens eram estranhas. Todos os croatas residentes em Vukovar estavam a combater ou haviam sido capturados, pelo que as redes noticiosas croatas tinham intercetado uma transmissão alemã, o seu correspondente narrando os acontecimentos numa mistura de consoantes que não me era familiar. A transmissão era em direto e o narrador não fora traduzido, mas o refugiado, os meus pais e eu fitávamos o ecrã, como se olharmos para ele com afinco melhorasse a nossa capacidade de perceber alemão. As fachadas de betão das casas estavam desfiguradas, marcadas pelas balas e pelos morteiros. Os tanques do JNA avançavam a toda a velocidade pela rua principal, seguidos por comboios de camiões brancos das Forças de Manutenção da Paz da ONU. Ao longo da estrada, num local que, provavelmente, estivera outrora coberto de relva, mas agora se encontrava espezinhado e enlameado, filas de pessoas jaziam de rosto virado para baixo, os narizes contra a terra e as mãos atrás da cabeça. Um soldado barbudo com uma AK-47 andava por entre as filas. Ele disparou. Algures, alguém gritava. De súbito, a câmara ergueu-se e afastou-se, captando antes o colapso da torre de uma igreja. O rugido abafado de uma explosão distante ribombou pelos altifalantes da televisão. Ao fundo, mais homens barbudos, com bandeiras negras com caveiras marchavam pelas ruas vazias, cantando ‘Bit će mesa! Bite će mesa! Klaćemo Hrvate!’, «Haverá carne! Haverá carne! Vamos abater todos os croatas!»” (pp. 57-58)
“A princípio, as reações dos adultos rondavam a preocupação e a intromissão, tecendo perguntas acerca da guerra, e eu falava com verdade acerca das coisas que vira. No entanto, as minhas descrições eram, muitas vezes, recebidas com um afastamento desconfortável do olhar, como se esperassem que retirasse as coisas que dissera, que afirmasse que, afinal, a guerra ou o genocídio não eram nada de especial. Ofereciam as suas condolências, como lhes havia sido ensinado, aguardando em seguida durante um instante educado antes de apresentarem uma desculpa para porem fim à conversa.
As considerações sobre o como e o porquê de as pessoas ficarem num país com condições tão terríveis era o que mais odiava. Sabia que tinham origem na ignorância, não em conhecimento. Falavam assim porque nunca tinham sentido o cheiro do fumo dos ‘raids’ aéreos ou o odor da carne queimada a partir das suas varandas; não conseguiam imaginar que um local tão perigoso continuasse a abrigar todos os sentimentos ligados a um lar.” (p. 82)
“Ele estava a tentar calcular quanto tempo seria preciso para esquecer a guerra.
- Talvez já estejamos a caminho – disse. – Os miúdos que nasceram nos últimos cinco ou seis anos já nasceram fora do tempo de guerra. São bebés pós-guerra.
- Ainda todos falam nela – disse Luka.
- Aqui talvez. Mas falar não é o mesmo que vivê-la.
- Não é preciso viver algo para recordar. Tu hás de ter filhos e eles hão de querer saber onde estão os seus outros avós.
- E eu direi que morreram.
- Devias dizer-lhes a verdade.
- Essa é a verdade. Morreram.” (pp. 221-222)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Critica muito bem escrita, com detalhes importantes.suscita curiosidade e vontade de o ir ver.
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