“A vida é tão curta para ser pequena.” (p. 19)
Vencedor do Prémio Machado de Assis, em 2014, na categoria de melhor romance, “Nossos Ossos” apresenta um retrato nu e cru do submundo das drogas e do sexo em São Paulo. Apresentando Heleno no epicentro da narrativa, um indivíduo que tenta ganhar a vida através da escrita de guiões para teatro e séries, tentando sobreviver à rua, mas ainda assim passando muitas dificuldades, tantas vezes se recorda da sua terra natal, em Sertânia, Pernambuco, no Nordeste Brasileiro, terra natal também de Marcelino Freire, o autor do romance. Na verdade, os vários locais descritos neste pequeno romance seguem em linha com as vivências do autor que vive actualmente em São Paulo onde decorre a narrativa.
Heleno é viciado na escrita, mas também nas esquinas e nos locais de engate frequentados por rapazes que se prostituem como forma de sobrevivência. É num desses locais que Heleno conhece
Cícero, aquele que vai ser o seu “boy” durante algum tempo, um jovem que o vai fazer sentir vivo novamente e por quem acaba por se apaixonar. Longe de imaginar que na fúria da satisfação sexual e como forma de fazer ciúmes a Carlos, o seu anterior companheiro, Heleno acaba mesmo por se envolver emocionalmente por Cícero, mais não seja pela ilusão de quebrar a solidão que sente na grande cidade.
Entre relatos dramáticos e crus deste submundo paulista onde abunda a doença e o crime, Heleno está contaminado, desconhecendo a origem do mal e, como se não bastasse, Cícero é encontrado morto, desfigurado. Na tentativa de se redimir e de sentir alguma paz consigo mesmo, Heleno, em nome do amor que sente pelo seu “boy”, decide organizar as exéquias fúnebres, devolvendo o corpo à família e à sua terra natal.
No meio de tanta desgraça, crueldade, doença e miséria humana, Heleno tenta encontrar rasgos de humanidade que lhe devolvem paz de espírito (ou de consciência).
A partir deste ponto, Heleno não tem nada a perder, a sua missão está cumprida, consigo próprio, com Cícero e a sua família, no fundo, com a vida. Não tem de fazer nada mais e São Paulo é apenas a cidade que nunca deveria ter conhecido, um erro de ‘casting’ onde conheceu o amor fugaz, a doença e a morte. Heleno tem apenas um sonho face ao pouco tempo de vida que lhe resta. Regressar a Sertânia, a sua terra natal e ser enterrado no quintal da sua família.
Uma narrativa que alterna frequentemente entre o discurso directo e o indirecto, “Nossos Ossos” dá-nos a ideia de movimento, frases que sugerem pensamento e acção, utilizando uma linguagem dura e crua, sem tabus. Os temas abordados são trazidos com a força do pensamento e do desejo dos personagens, tal como os sentimentos. Nada é polido porque a realidade é cruel. Uma narrativa alucinante com uma escrita que cativa o leitor à medida que o arranca do seu sofá confortável e o transpõe para os meandros da miséria social, da podridão humana, porque essa é também a condição de tantos seres humanos.
Excertos:
“Marquei com o mensageiro no bar da outra rua para não chamar a atenção do pessoal do hotel, um menino moreno, com idade para ser meu neto, eu esqueço essas diferenças, na companhia dele nem lembro que estou velho e doente, precisava também dar a ele um pouco de dinheiro, na última vez em que estivemos juntos ele me contou da mãe sem saúde, todo menino, em qualquer esquina, recepção, no centro desta cidade, tem uma mãe que morre-não-morre, um pai que bebe-e-bate, o senhor é muito gente-fina, vai querer, de novo aquele esqueminha?
Amoleci, eu disse para ele, eu não estou bom do juízo, uma dor qualquer, um cansaço, bebi só um gole de conhaque, agradeci, sincero, as noites, poucas, que passamos juntos, não seria justo que eu continuasse nessa vida de putaria, sem propósito, todo garoto saudável é para mim uma tentação, como se eu houvesse congelado o meu sentimento, jovem, naquele tempo em que acreditei no amor de Carlos, em sua devoção para todo o sempre, tome, guarde, dei a ele um envelope, o frangote merecia, sim, estou indo de volta para o Nordeste, a minha terra, você sabe, aqui eu não piso mais, é de vez, nem a passeio, quis ele saber, e se um dia eu resolver fazer uma visita lá, em Pernambuco, tem tanta praia bonita, talvez eu não esteja mais vivo, ora, deixe isso, o senhor nem parece a idade que tem, soltou um sorriso, um sorriso do bem, pedi que ele fosse para casa, já era tarde, a minha viagem seria longa, qualquer dia, então, a gente se reencontra.” (p. 59)
“São Paulo, por exemplo, foi sempre um mal necessário, seus apelos e prédios, viadutos e bichos, drogas e sexos, de nada eu me arrependo, compreendo o meu destino, trágico, dele construí a minha arte, o meu maior sacrifício, toda a minha liberdade.” (p. 90)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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