Dificuldades económicas, doenças do foro psiquiátrico tantas vezes desenvolvidas na sequência do desemprego e desestruturação familiar, sobrevivência aniquilada por uma realidade que se impõe e que é estranha e cujos mecanismos de escape e de redenção são tantas vezes o reforço do alheamento social, assim como da consolidação das estruturas políticas e económicas corrosivas que transformam a democracia e o capitalismo numa derrocada social análoga à ideia de a carne se separar dos ossos por deixarem de fazer parte do mesmo organismo.
A falta de aspirações por falta de consciência e até de liberdade, contribui largamente para a dependência de uma parte significativa da sociedade de programas de televisão que ainda a vai embrutecer mais, tornando-a cada vez mais submissa. Toda uma cultura de massas em que não há espaço para a reflexão conduz sobremaneira para essa aniquilação e desmembramento.
“Pastoralia” é a novela de abertura deste volume de George Saunders e, provavelmente o melhor desta obra, talvez pelo seu desenvolvimento e toda a problemática social apresentada. A novela apresenta-se como uma distopia na medida em que apresenta, de uma forma crua e desprovida de
sentimentos, o modo como “simples funcionários” de uma empresa se submetem aos critérios e desígnios de funcionamento da mesma, transformando-se em verdadeiras peças de xadrez em que, face à pressão dos números e dos resultados, haverá sempre alguém a abater, como os mais fracos, os mais frágeis, os incapazes, entre outros. É a sobrevivência pela sobrevivência. É a sobrevivência de quem precisa do trabalho para viver para poder ajudar o filho doente que necessita de acompanhamento e de tratamentos em detrimento de quem precisa de trabalhar para garantir o vício da toxicodependência do filho e para pagar a alguém que cuide da mãe acamada. Uma prioridade que se sobrepõe sobre a outra sem dó nem piedade. Os números, as metas, o desempenho dos funcionários que geram a contenda e a mesquinhez entre si numa tentativa de sobreviver. De sobreviver a algo que não se sabe muito bem o quê, nem como! Mas cuja sobrevivência e modo de vida é controlada por esferas e cúpulas superiores que, tantas vezes, nem sequer um rosto possuem. É o poder da macroestrutura que se impõe, mina e corrompe a vida humana na sua essência, privando-a da realização do seu fim, a felicidade.
Imagine-se uma empresa, um parque de diversões decrépito que tem como objectivo mostrar aos visitantes como se vivia nos tempos do Homem de Neanderthal, no Paleolítico Superior. Os funcionários da empresa simulam habitar a caverna onde não pode haver espaço para falar inglês, libertando-se de tudo o que é referência civilizacional, reflexo das conquistas feitas pela Humanidade, abandonando-se ao viver primitivo, bárbaro, como o simular apanhar bichos para comer, grunhir, desenhando ou pintando na caverna aludindo parcamente à ideia da arte parietal.
É neste contexto que os funcionários deste parque de diversões decrépito vivem não vivendo, anulam-se perante a sua condição de seres humanos face a uma ordem superior que os controla totalmente. O andar por ali nos tempos livres, mesmo sem visitantes, reflecte a forma de rudeza e de indiferença a que a sociedade contemporânea chegou, uma total submissão à ordem estabelecida sem que para tal se questione, por falta de consciência, porque até o trabalhar e desenvolver essa faculdade foi aniquilado.
“Pastoralia” apresenta, neste sentido, situações que têm tanto de caricato, bizarro, mas também de surreal. O humor negro suaviza em certa medida o carácter agressivo das situações descritas, tornando até comoventes algumas das histórias. Se por um lado sorrimos perante a incredulidade apresentada, é certo que também sorrimos perante alguma incapacidade da nossa parte enquanto cidadãos em reverter essa mesma situação. Se “Pastoralia” nos diverte e ocupa o tempo, também nos transmite uma certa frieza e tristeza face à forma como a sociedade chegou até aqui, fazendo-nos questionar qual é o nosso lugar e como pretendemos ser felizes enquanto seres humanos na sua individualidade e em sociedade.
Excertos:
“- Vendeste a televisão? – diz ela.
- Nunca havia programas de jeito! – diz ele. – Se houvesse bons programas, eu teria recuperado de certeza. Mas não. Era tudo chato. Portanto decidi organizar uma festa para toda a gente, porque tinham sido todos tão simpáticos comigo ao deixar-me manter a televisão no meu quarto. E portanto, estás a ver, vendi a televisão, a pensar na festa, e levei o dinheiro à Loja das Festas, para comprar algumas coisas para a festa, chapéus e apitos e assim, mas depois tenho este problema, com substâncias, e portanto, tipo, assim de repente, apeteceu-me substâncias. E depois cruzei-me com um tipo que vendia substâncias. O tipo lixou-me à grande! Aparecer ali com substâncias logo numa altura em que eu tinha dinheiro? Ele estava-se a marimbar para o meu processo de recuperação.
- Vendeste a televisão da clínica para comprar droga – diz ela.
- Para comprar substâncias, mãezinha, importas-te de usar as palavras certas? – diz ele. – Os nomes que damos às coisas são importantes, mãezinha, o Doe ensinou-me isso numa das sessões. Tudo bem, se calhar não devia ter vendido a televisão, mas tu não és uma consumidora involuntária de substâncias, e sabes que mais, eu sou, por isso é que lá estava. Percebes o que estou a dizer? Eu sei que gostavas de ter um filho perfeito, mas não tens, tens um filho que é um consumidor involuntário de substâncias e que por vezes comete erros de avaliação, tipo pedir uma televisão emprestada e depois vendê-la para comprar substâncias.
- Ou anéis e jóias – diz Janet. – Os meus anéis e as minhas jóias.
- Foda-se mãezinha, isso foi há tanto tempo! – diz ele. – Porque é que estás sempre a falar nessas merdas antigas? O Doe é que tinha razão. Para tu ganhares, eu tenho de perder. Tipo como quando eu era miúdo e disseste à frente da rua inteira que eu era torturador de animais? Isso magoou-me muito. Isso causou-me muitos problemas. Estávamos a resolver esse assunto nas sessões de grupo antes de me vir embora.
- Apanhei-te a torturar um gato – diz ela. – Com a porra de um espeto.
- Um espeto que eu próprio construí na aula de Trabalhos Manuais – diz ele. – Mas claro que dessa parte nunca falas.” (in “Pastoralia”, pp. 44-46)
"Na urbanização Carvalho do Mar não há carvalhos nem há mar, só uma centena de apartamentos sociais com vista traseira para os correios. A Min e a Jade estão a amamentar os bebés enquanto vêem um programa chamado 'Como o Meu Filho Morreu de Morte Violenta'. A Min é minha irmã. A Jade é nossa prima. 'Como o Meu Filho Morreu de Morte Violenta' é apresentado por Matt Merton, um loiro com um metro e noventa que está sempre a abraçar os pais pelos ombros e a dizer-lhes que foram santificados pelo sofrimento. O programa de hoje apresenta um miúdo de dez anos que matou um de cinco anos quando este recusou juntar-se ao seu gangue. O miúdo de dez anos estrangulou o miúdo de cinco anos com uma corda, encheu-lhe a boca com autocolantes, depois fechou-se na casa de banho e não saiu enquanto os pais não prometeram levá-lo à FunTimeZone, onde confessou o crime antes de mergulhar aos berros numa gaiola cheia de bolas de plástico. O público está a gritar ameaças aos pais do assassino enquanto os pais da vítima sugerem tolerância e misericórdia com tanta ênfase que a dada altura o público começa a ameaçá-los também.” (in “Carvalho do Mar”, p. 113)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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