O livro que apresento hoje é um pouco exemplo disso. Não se trata de uma leitura realizada nas últimas semanas, mas sim no Verão passado. Por alguma razão, acabei por nunca ter escrito sobre o livro, não que tivesse dado primazia a outros ou que tivesse gostado mais de outros em detrimento deste. Não aconteceu simplesmente.
O livro que proponho esta semana intitula-se “Os Excluídos” de Elfriede Jelinek (n. 1946), Prémio Nobel da Literatura, em 2004, e constituiu uma das minhas leituras preferidas de 2016, tendo sido igualmente o primeiro contacto que tive com a escrita desta autora austríaca.
Viena. Anos 50. Um grupo de jovens tem a pretensão de se demarcar do modo de vida e dos valores face à geração anterior com todo um passado ligado ao nazismo e a tantos outros esqueletos no armário. A Áustria, neste período da História recente, é ela própria um cadáver tentando sobreviver ao passado e às escolhas que fez enquanto país. Um país cujos jovens tentam sobreviver ao estigma da culpa dos progenitores face à mancha sangrenta derramada na História da
Jovens que têm a pretensão a constituir uma elite formada, em boa verdade, por pessoas já falhadas por carregarem o estigma do passado. Jovens que almejam pertencer a um grupo culturalmente superior, mas cuja distinção apenas consegue fazer vítimas dos seus desejos primários. Sentirem prazer ao espancarem um indivíduo é tudo quanto o seu nível cultural consegue almejar! Mas estes jovens pretendem ir mais longe. Gostariam de perceber e de sentir o que é tirar a vida a alguém. Jovens pérfidos, psicologicamente perturbados, valores fora do lugar num país à nora que tenta
encontrar o seu rumo face a tanta loucura, sofrimento e assassinatos perpetrados no decurso da 2ª Guerra Mundial.
Elfriede Jelinek não é mansa a escrever! Diria que a autora é dotada de uma escrita fortemente masculinizada, bruta, despojada de sentimentos, fria como uma máquina numa fábrica que cumpre a sua função. Não raras vezes, o leitor é confrontado com momentos de irritação, má-disposição, enervamento e vontade até de largar o livro. A escrita de Elfriede Jelinek é despojada de floreados ou prosa poética. Se é para bater, bata-se com força! É para doer! Se é para matar, que se seja exemplar no acto!
Com Elfriede Jelinek temos o lado negro e obscuro da literatura que nada mais é do que um reflexo de tudo quanto é mau na humanidade, nos sentimentos e no agir. Elfriede Jelinek é crua e cruel na forma como escreve e talvez seja graças a esses traços que uma obra como “Os Excluídos” dificilmente de esquece, mesmo tendo passado tanto tempo depois da leitura.
Não direi de forma alguma que “Os Excluídos” é um livro amoral ou imoral ainda que os personagens actuem entre uma e outra, no entanto, não deixa de ser uma obra inquietante e não menos terrível. Em todo o caso, Elfriede Jelinek é um “monstro” a escrever!
Mais, não deixa de ser preocupante face ao rumo que a Europa está a tomar nos dias que correm, na sequência do avanço inclemente e impiedoso da extrema direita, que este romance não deixe de ter eco até ao presente. A indiferença e o desejo de opressão e de exclusão face ao outro que se considera estranho ou a mais na sociedade, passa gradualmente a ser alvo político de radicalismo onde falta o bom senso e o sentido de História e a recuperação da memória para medir perigos iminentes, tão semelhantes ao período da década de 30 e início dos anos 40 do século passado.
Excertos:
“Sade diz que é preciso cometer crimes. Usa-se a palavra crime a este propósito para seguir o consenso geral, mas entre nós nunca designaríamos assim um dos nossos actos (Anna). Nós precisamos da norma válida na consensualidade para nos excitarmos com a nossa própria desmesura. Somos monstruosos, ainda que tenhamos o aspecto de burgueses como camuflagem. Somos filhos de burgueses mas não ficámos por aí. No íntimo estamos corroídos de más acções, no exterior somos alunos do liceu.” (pp. 44-45)
“A mãe comete agora o erro decisivo, como sempre que se enfurece e já não consegue controlar-se perante o seu filho, de falar do campo de concentração, da criança que estava a comer uma maçã e que foi atirada contra a parede até morrer, e cuja maçã foi a seguir acabada de comer pelo assassino. E das crianças que foram atiradas da janela do segundo andar por crueldade. E da mãe que foi mandada para a câmara de gás com o filho de dois dias porque tinha pedido ao médico que ainda a deixasse dar à luz. O médico tinha autorizado.” (p. 144)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Impossível esquecer a escrita desta autora.... brutal mesmo, perfeito exemplo do lado negro, sim.
ResponderEliminarUm livro extremamente perturbante e não se consegue esquecer!
Abraço
Teresa Carvalho
Apenas li "A Pianista" desta escritora. Ao ler a apreciação do Jorge Navarro, nos adjectivos que utiliza para descrever a escrita desta autora austríaca, revejo-me plenamente neles, pois adaptam-se perfeitamente <à minha apreciação ao livro "A Pianista". Um livro profundamente angustiante e perturbador. De tal forma, que decidi que Elfriede Jelinek não é uma escritora a que tenha vontade de voltar. Fica-se vazio com esta escrita.
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