Para quem já conhece as obras da escritora, as suas narrativas apresentam, de um modo geral, eco na História de Portugal, colocando vários períodos e gerações de portugueses em confronto. Os valores republicanos aparecem de forma transversal nas obras de Filomena Marona Beja a par do papel da mulher que tem sempre um notório enfoque no que respeita aos direitos alcançados, não esquecendo o importante papel que tem na sociedade contemporânea, não apenas como força de trabalho, mas também na transmissão dos valores por que se debate na sociedade. O novo romance não é exceção no que respeita aos pontos acima indicados.
Para quem já leu outras obras de Filomena Marona Beja, apercebeu-se da forma peculiar com que apresenta a narrativa, de modo sincopado, introduzindo breves frescos onde articula de modo exímio o discurso direto com a narrativa propriamente dita. Mais, a forma tão característica da escritora apresentar as ideias através do não dizer, dizendo, levando o leitor concluir o raciocínio, é algo que consegue de uma forma muito simples, utilizando, para o efeito, frases curtas, mas tantas vezes com bastante intensidade.
A escritora tanto surpreende o leitor com um discurso doce, como no momento oportuno dá a facada que já estava planeada, surpreendendo sempre. É acutilante, mordaz e corrosiva quando é necessário sê-lo como que, em certa medida, fosse a forma de fazer pedagogia com o leitor, servindo igualmente de crítica àquilo que é necessário corrigir, melhorar na sociedade.
Não pense o leitor que Filomena Marona Beja apresenta um discurso eminentemente conservador. Nada disso. A escritora consegue com relativa facilidade articular o passado e o presente, ligando personagens de diferentes gerações numa partilha de valores, uns que se tendem a perder, outros que surgem, ainda que enevoados e que de certa forma tendem a impor-se.
A utilização de vocabulário caído em desuso é outra das características da escrita de Filomena Marona Beja. Palavras de outros tempos, das gerações mais recuadas e não necessariamente um vocabulário rural. Essa linguagem é simultaneamente a forma de recuperar um Portugal de outros tempos, refletindo-se na escrita a melancolia associada a tempos idos e que todos os leitores invariavelmente farão a ponte com o antigamente até onde poderão ir as suas memórias.
A escritora consegue com as suas narrativas despertar as nossas próprias recordações, memórias associadas a lugares, pessoas, episódios, que nalgumas situações se poderão cruzar com certos acontecimentos da História do país.
Os romances de Filomena Marona Beja não são romances históricos, porém, não deixam de refletir as marcas desse mesmo registo narrativo, não esquecendo o rigor histórico em que assentam. São obras pejadas de vitalidade capazes de traspor o leitor para o seio dos acontecimentos como se ele ali estivesse a marcar presença junto dos personagens.
No caso específico de "Um Rasto de Alfazema", o epicentro da narrativa são os nossos dias, os dias da crise. Dias difíceis, uma época que tem assistido a profundas transformações na economia, na sociedade. Mas também nas famílias através das novas facetas e abordagens familiares, o desemprego que fustiga milhares de portugueses levando tantas pessoas ao desespero porque afinal, nada disto estava programado antes do início da crise. A crise condiciona também o amor e a forma como as relações afetivas se desenrolam e sobrevivem. Os casamentos desfazem-se e as novas relações tendem a estabelecer-se sem papel passado enquanto o amor durar. É mais fácil assim cada um ir para seu lado.
O personagem principal é Filipe Rolizo. Vive em Lisboa, perdeu o emprego e decide pôr um fim no seu casamento que há muito que já perdera o sentido. O divórcio será difícil de gerir assim como a guarda da filha menor que ficará a cargo da ex-mulher que não lhe dará tréguas nos tempos vindouros.
Com pouco dinheiro e expetativas de sobreviver em Lisboa, Filipe tem o aval do seu tio Jorge Rolizo para usufruir da quinta localizada algures no concelho de Benavente ou Coruche (pela indicação do rio Sorraia) no intuito de produzir plantas aromáticas para eventual exportação e, quem sabe, introduzir na região, dada a proximidade com Vila Franca de Xira, uma nova atividade turística no âmbito da aventura que é a prática de balonismo.
Entre avanços e recuos no projeto, Filipe Rolizo vai lutando, dando o seu melhor, ainda que às vezes o desânimo e o pouco alento se instalem. Não fazendo muito caso, vamos ficando a conhecer as diferenças entre o que aconteceu no Ribatejo e Alentejo a seguir ao 25 de Abril no âmbito da Reforma Agrária sob a égide "a terra a quem a trabalha" em que os muitos braços que produziam em Portugal procuraram outras tarefas com a introdução da Política Agrícola Comum (PAC) na sequência da entrada de Portugal na então CEE.
Filipe Rolizo irá ser confrontado com as diferenças culturais entre Lisboa e as paragens ribatejanas como se fossem postos em confronto dois mundos, duas realidades totalmente distintas. Em certa medida é isso mesmo que acontece, pois partindo de uma Lisboa onde não conhece ninguém e onde ninguém se preocupa com ninguém, Filipe Rolizo "aterra" numa pequena localidade em que os habitantes tudo o que pretendem é mesmo saber o que vem este indivíduo agora fazer ali. Rapidamente o diz-que-diz instala-se na pastelaria, no café, na casa deste e daquele porque afinal a vida alheia continua a ser sempre bastante mais interessante. Este corrupio de notícias ambulantes que anda de boca em boca espalha-se pelas localidades das proximidades independentemente da sua veracidade.
Novos amigos surgem na vida de Filipe Rolizo, principalmente Ruben e Teresa que sem darem conta acabam numa espécie de triângulo amoroso. O quem é quem nesta complexa relação, os sentimentos de se nutrem, os sentimentos que se omitem, o amor que se faz, o sexo que se deseja, a tensão que é reprimida irão circular entre este trio que só já mais tarde compreenderá os ganhos e as perdas.
A vida moderna, acelerada e complexa de Lisboa em oposição à calmaria e trabalho de braços do Ribatejo estão bem representados nesta obra, como sendo partes integrantes do mesmo país, ainda que projete duas realidades distintas, duas velocidades.
Omissões do passado que se materializam a par de acontecimentos que mudam radicalmente as vidas das pessoas culminam com o final inesperado de "Um Rasto de Alfazema". As expetativas, as frustrações, a falta de dinheiro, os sonhos por realizar são a premissa deste novo romance de Filomena Marona Beja que reflete a sociedade portuguesa dos nossos dias.
Trata-se de uma obra cativante desde as primeiras páginas e que nos arrepia com a dimensão humana com que a narrativa vai avançando. Os dias da crise não são dias fáceis. O futuro incerto aparece-nos sob a forma de uma névoa. O que temos hoje como garantido esfuma-se no amanhã do porvir.
Um livro que nos deixa as emoções ao rubro, quiçá com uma lágrima no canto do olho. Emocional, emocionante, mas sem cair no sentimentalismo despojado de sentido.
"Um Rasto de Alfazema" poderá bem ser considerado o melhor romance de Filomena Marona Beja.
Excertos:
"- Tio Jorge… é para a sua quinta que eu quero ir.
Para a Zamboeira?!
Sim.
- Com intenção de vir explorar essa tal ideia dos balões…
Os ares do Sul do Tejo. A atracção pela aventura. A empresa que, mais cedo ou mais tarde, haveria de criar.
- O que lhe parece, tio?
Um capricho? Uma extravagância?
- Diga, tio!
Jorge Rolizo parou de desenhar uma nuvem. Trocou de lápis.
- Não sei o que te diga, Filipe.
- Capricho…
Não, não achava que fosse.
- Mas… e as condições para um negócio desses?
- As condições, tio…
Dinheiro? O que recebera da indemnização. Mais não tinha.
Crédito? Improvável.
Começaria, então, por outra coisa.
- Mais por baixo, por estufas e canteiros de plantas aromáticas.
Sabia que não iria ocupar um vasto território.
- Mas há-de apropriar-se. Se o tio estiver de acordo…
Plantas de cheiro? Hortelã? Coentros?
- Filipe… tu não sabes nada disso!
Diversidades, plantios. Cuidados para que a seca não desse cabo de tudo. E se a humidade fosse excessiva?
- Vou saber, tio.
- E mão-de-obra? Dantes, havia uma boa oferta. Mas essa gente…
Desaparecera.
Gente despedida da terra pelo fim da Reforma Agrária. Pelas devoluções de propriedades. Pela modernização que a Europa começara a exigir.
- E os que por lá ficaram ou já morreram ou estão velhos…
Recolhidos nos lares das Misericórdias.
- Assim… Com quem estás tu a contar, Filipe?" (pp. 37-39)
"Entretanto, a crise.
«Numa ocasião destas?!»
«Quando parecia que ia tudo tão bem!»
«…e eu a precisar de uns sapatos novos.»
«Diz a minha tia que, dantes, se levavam as botas ao sapateiro e mandava-se pôr meias-solas.»
«Ela diz isso?!...»
Sim. E havia também quem se lembrasse da fome. De uma sardinha que se repartia por todos. Das esmolas de pão duro, recolhidas de porta em porta.
Misérias. Muitos séculos de miséria.
«Alto aí!»
«Agora…»
«…estamos no século XXI!»
«E entre países ricos.»
Pois.
Mas agora, o país parecia ter uma seta apontada contra si.
Seta de papéis dobrados, enrolados. Milhões de notas de banco em poder não se sabia de quem." (pp. 116-117)
"Dia de missa, em todas as igrejas. «Em honra dos que foram santos e nós não sabemos», era o que se dizia. E acreditava.
Depois os garotos, de saqueta na mão, iam bater a todas as portas. Aos portões dos arredores.
Pediam: «Pão-por-Deus, senhora…», «Dê-me o Pão-por-Deus, lavradora…»
E recebiam moedas, romãs, nozes, figos.
Era a partilha da abundância, no fim da colheita. E não por crença religiosa, mas por ser costume. Coisa muito antiga. Pagã.
(…)
- Gostou do almoço?
Uma sopa de bacalhau e salada de alface. A sopa quente, a salada fresca. Ambas bem temperadas.
- Gostei muito, Eugénia… Comi tudo.
- Então, que lhe faça bom proveito. Eu, agora, vou sair.
Não disse onde ia. Filipe, porém, entendeu-a.
- Ouvi por aí que o dia de Todos-os-Santos vai deixar de ser santo…
- Feriado? Para o ano não vai ser. E de futuro não sei… Há que dar a volta a isto, Eugénia." (pp. 195, 197)
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