O ano editorial português começou em grande estilo com a recuperação de uma das obras de referência de Simone de Beauvoir (1908-1976) como "O Segundo Sexo", um livro emblemático no contexto do feminismo contemporâneo, que foi publicado em simultâneo com a novela "Mal-entendido em Moscovo" que será o pano de fundo do artigo desta semana.
Com uma mensagem que tem tanto de contemporâneo como de universal, "Mal-entendido em Moscovo" conta-nos a história de André e Nicole casados há já muitos anos e que agora, chegados aos 60 anos, e em situação de aposentação após uma carreira como professores, têm bastante tempo livre para se dedicarem a tarefas que lhes dão um prazer efetivo.
Passado em 1966, o casal francês aceita o convite para visitar a amiga Macha que reside em Moscovo, passando um mês naquela cidade, para assim rever as principais atrações turísticas com que tinham ficado deslumbrados três anos antes aquando da sua primeira visita à capital russa, aproveitando igualmente para conhecer outros recantos da cidade, além de outros pontos fulcrais do país, nomeadamente S. Petersburgo, Novgorod, entre outros locais de interesse.
A viagem que tinha tudo para ser um sucesso, acabou por vir a ter um sabor agridoce na medida em que foram várias as vezes que não conseguiram obter autorização para se deslocarem a determinados locais na sequência de limitações impostas aos turistas atendendo às questões relacionadas com a política de então assente na guerra fria. Por outro lado, o fascínio patente naquelas primeiras impressões que tiveram lugar na primeira viagem à cidade não se reflectiram três anos depois, na segunda visita ao país, não se verificando, pois, o factor novidade. Esta ausência de novidades e a distância do filho Philippe, prestes a casar, provoca o sentimento de saudade em Nicole que gere com alguma relutância o facto a decisão de o filho casar e sair de casa.
O casamento de Philippe que agora se avizinha provoca alguma instabilidade e nervosismo em Nicole que interpreta o facto de alguma forma como um sentimento de perda, tornando-se mais introspectiva no que respeita à relação que mantém com o seu marido André. Passados tantos anos de relação, Nicole é levada à conclusão de que o seu casamento não a satisfaz, não fazendo sentido manter o casamento só para não ficar sozinha. Por outro lado, Nicole também não sente a coragem suficiente de abandonar o barco na medida em que aquilo que sente por André, afinal, é sempre a garantia para não ter de o fazer.
As mentiras e omissões em que apanhou André nos últimos meses vão culminar numa situação de cansaço durante a viagem a Moscovo que esteve na iminência de ser prolongada, gerando um mal-entendido entre o casal que a dada altura é posto o próprio relacionamento em causa.
Assim como a viagem a um destino já conhecido deverá passar pela descoberta de novos pontos em concreto, também a relação de André e Nicole teve de passar por uma fase de reaproximação, balanço e redescoberta de modo a ser mantido o equilíbrio de ambas as partes com vista à felicidade conjunta sem danos de maior monta.
É precisamente nos momentos em que Nicole decide ficar sozinha, prescindindo de alguns passeios pela capital russa que a introspeção se torna nos melhores momentos desta novela na medida em que são pesados os prós e os contras da relação de André e Nicole cujo balanço realizado passa pelo facto de sermos falíveis enquanto seres humanos e que por vezes, nós próprios, temos tantas falhas e/ou limitações quanto a outra metade que não poucas vezes é criticada.
Em "Mal-entendido em Moscovo", Simone de Beauvoir traz em jeito de discussão algumas das suas principais linhas de força do seu pensamento colocando a mulher no centro da narrativa.
Há mal-entendidos que são verdadeiros luxos literários!
Excertos:
"Por um instante pensou: isto é um sonho, vou acordar, recuperar o meu corpo, tenho vinte anos. Não. Um adulto, uma pessoa de idade, quase um velho. Olhou para eles com uma certa inveja: porque já não sou um deles? Como é que isto pôde acontecer?" (p. 59)
"Quando somos jovens e temos pela frente uma ilusória eternidade, pulamos de um salto para o outro lado da estrada; mais tarde, deixamos de ter força para fazer face aos ditos custos imprevistos da História e consideramo-los muitíssimo elevados. Tinha confiado na História para justificar a sua vida: agora já não confiava." (pp. 67-68)
"Demasiado mimada pela mãe, ignorada pelo pai, guardava aquela ferida, a de ser mulher. A ideia de um dia ter de deitar-se por baixo de um homem revoltava-a. Graças à delicadeza de André, à sua ternura, reconciliara-se com o seu sexo. Aceitara alegremente o prazer. E, passados alguns anos, tinha mesmo desejado um filho, e sentiu-se realizada com a maternidade. Sim, era dele, e não de qualquer outro, que ela precisava. E ele, porque se apaixonara por ela quando, regra geral, devido à sua agressividade, ninguém gostava dela? Talvez o rigor e a severidade maternais que tanto o afetaram fossem simultaneamente necessários para ele e conseguira encontrá-los em Nicole. Tinha-o ajudado a tornar-se, bem ou mal, um adulto. Em todo o caso, sempre tivera a impressão de que nenhuma mulher lhe conviria tanto como ela. Estaria enganada? Pelo seu lado, ter-se-ia sentido mais realizada ao lado de outro? Questões inúteis. O único problema era saber o que restava deles hoje. Não fazia ideia." (p. 87)
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