A atenção em torno da recente publicação de "A Minha Luta: A Morte do Pai" do norueguês Karl Ove Knausgård (n. 1968) tem transformado o livro no centro das atenções dos media e de muitos leitores atentos que aguardavam com expetativa a edição em língua portuguesa há cerca de pelo menos um ano.
O considerado "livro do momento" apelidado ou mesmo apresentado por muitos como "the next big thing" da literatura em geral (e não necessariamente nórdica) levantou inúmeras questões sobretudo no que respeita aos limites da literatura no tocante à sua dimensão ético-moral, fazendo-nos refletir sobre a relação entre o que é contado e o modo como é escrito.
Se partirmos do princípio que num livro cabem todo o género de histórias, isso não traz grandes questões na medida em que a literatura também tem e deve ter o entretenimento como uma das suas funções independentemente de as suas histórias serem mais ou menos verosímeis. Mas quando o livro que temos entre mãos retrata todo um conjunto de histórias de cariz autobiográfico, a atitude do leitor muda um pouco face à obra e ao autor face à exposição deste perante os seus leitores em variadíssimos pontos, situações, acontecimentos da sua vida. O caráter tendencialmente intimista que este género de obras adquire envolve o leitor, mais ou menos, face ao conteúdo dessa mesma exposição, como também em relação à forma como é concretizada essa mesma exposição.
Em situações recorrentes no tocante a obras de cariz autobiográfico, regra geral, o autor salvaguarda certos acontecimentos, pensamentos ou outras situações de modo a não se sentir comprometido perante o leitor, salvaguardando igualmente todos aqueles, familiares entre outros, pelas mesmas razões.
É precisamente este último ponto a questão nevrálgica do primeiro volume de seis de Karl Ove Knausgård que a Relógio d’Água começou a publicar no final de 2014. O autor norueguês decidiu pôr a nu toda a sua vida, bem como a dos seus familiares sem qualquer pudor, granjeando vários dissabores por parte de familiares envolvendo questões judiciais na tentativa de esta obra megalómana com mais de 3500 páginas (os seis volumes) não ser publicada.
"A força do tema e do estilo deve ser destruída para que a literatura possa existir. É a essa destruição que se chama ‘escrever’. Escrever relaciona-se mais com destruir do que com criar." (p. 171) Talvez seja este o lema ou o porta-estandarte do autor que nos apresenta uma obra que de algum modo funciona como uma espécie de terapia sem sofá ainda que se perceba claramente uma escavação sistemática nos calabouços da memória, trazendo à luz uma obra que é fruto da sua vida, das suas dificuldades e desafios perante a vida, no fundo "a minha luta" referindo-se à vida e parafraseando a senhora que tinha dificuldade em pronunciar os dês "viver é lixato!" (expressão utilizada frequentemente ao longo do livro).
Resta saber se o constante emprego da palavra destruição (ou da mesma família) se relaciona com a necessidade de o autor sentir necessidade de "destruir" todo e qualquer sentimento de repulsa, por vezes raiva que chegou a sentir em relação ao seu pai que tanto o expôs ao ridículo, humilhando-o com frequência desde tenra idade e durante a adolescência, dado que quando o seu pai morreu, foi levado a compreender que as lágrimas frequentes perante a perda constituíam ainda o elo afetivo ao seu pai quando tudo à sua volta seguia em linha com um certo alívio após a morte.
A morte do pai do autor associada ao elevado consumo de álcool leva Karl Ove Knausgård a refletir sobre o seu gosto também pela bebida, não em situações de extremo, de coma alcoólico, mas pelo gosto de sentir que perde o controlo das situações à sua volta, derrubando, de certa forma, os vários conceitos de tempo, agarrando-se continuamente ao momento presente. "Além disso, o meu estado piorava pelo mesmo motivo: porque a embriaguez não me causava problemas de sono ou de coordenação, continuava simplesmente a beber até chegar aos limites do vazio e do primitivo. Adorava aquilo, adorava aquela sensação, era a minha sensação favorita, mas que nunca levava a
nada de bom, e no dia seguinte, ou nos dias seguintes, associava-se tanto ao excesso como à
estupidez, algo que odiava profundamente. Porém, quando me encontrava naquele estado, o futuro não existia, nem o passado, apenas aquele momento, e era por isso que queria tanto estar nele, já que o meu mundo, em toda a sua insuportável banalidade, brilhava." (p. 342).
A narrativa torna-se tanto mais rica quando adquire o tom intimista e reflexivo patente no excerto anterior envolvendo o leitor num misto de excitação e melancolia dado que é precisamente nestes momentos em que o leitor é recordado uma vez mais de que este livro é sobre estas pessoas de carne e osso.
Regressando à questão dos limites da literatura ou à dimensão ético-moral da literatura, "A Minha Luta: A Morte do Pai" remete-nos para a pertinência das questões e/ou assuntos abordados, do mesmo modo que poderíamos questionar se numa obra que não tivesse este cariz autobiográfico, faria sentido o questionar esta mesma dimensão ético-moral.
Assim, a dado momento da narrativa, quando o autor Karl Ove e o seu irmão Yngve estão a preparar o funeral do seu pai durante a visita à sua avó, tomaram conhecimento que a avó, à semelhança do seu falecido pai, se encontrava completamente dependente do álcool; que tinha mantido uma relação
com o irmão do seu marido antes de se ter casado; que tendo sido uma das primeiras mulheres com
carta de condução nos anos 30 em Oslo tinha sido motorista particular de uma senhora com posses de quem se tinha aproveitado de dinheiro que que encontrava à mão de semear na casa onde vivia; que durante a guerra os avós tinham estabelecido algumas amizades entre os militares alemães chegando a visitá-los na Alemanha após a guerra; que agora, sendo mais idosa, tinha maus hábitos de higiene não conseguindo reter a urina, passando o odor para a roupa, entre outras histórias em particular.
Estas são algumas das questões com que o leitor é confrontado sem que deixe de questionar o sentido ou a razão de ser, a pertinência face ao exposto sem, contudo, deixar de refletir sobre o sentido ético-moral da literatura.
Moralismos à parte, estamos perante uma obra que suscita curiosidade sem ser propriamente pela via do simples vouyeirismo e não se tratando de uma obra exemplar, estamos perante um feito que prendeu a atenção dos media catapultando o autor norueguês para os palcos da ribalta do mundo dos livros, um pouco por todo o mundo.
De qualquer modo, trata-se de uma obra que em termos gerais tem mais para oferecer em matéria de reflexão do que uma parte considerável das obras publicadas ao longo do ano. A meu ver, não se tratando da "next big thing" da literatura atual atendendo à forma como a obra tem sido apresentada e empolada junto dos leitores tendo, pois, uma boa campanha de marketing, devo reconhecer que se trata de uma obra com inúmeros atributos que não defrauda no fim os leitores.
Excerto:
"Porque os seres humanos são apenas uma forma entre muitas outras formas, que o mundo expressa uma e outra vez, não apenas do que vive mas também do que não vive, desenhado em areia, pedra e água. E a morte, que sempre tinha considerado a mais importante dimensão da vida, obscura, atraente, não era mais do que um cano que rebenta, um ramo que o vento quebra, um casaco que escorrega do cabide e cai ao chão." (p. 377)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Sobre a obra de Karl Ove Knausgård vários autores dão seu depoimento aqui: http://observador.pt/especiais/os-livros-do-desassossego/
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