Este texto foi apresentado pela escritora e gentilmente cedido ao blogue, na apresentação do livro que ocorreu na livraria Buchholz. É pois um texto oral e como tal deve ser lido e entendido. (cris)
Gosto de fúrias, fúrias em desalinho, torvelinho, desatino …
Tendo a simpatizar com pessoas que têm fúrias… fúrias por fora, mais do que aquelas que só têm as suas fúrias… por dentro.
Gosto até das erínias, vampíricas, aterradoras, com cobras em vez de cabelos, que apavoravam as assistências da Grécia antiga e, diz-se, até provocavam abortos, de tanto sobressalto - só de ouvir falar.
Gosto da fúria do mar, na música. Gosto da fúria dos ventos, na poesia. Gosto da fúria da areia, nos filmes.
Gosto do conceito de areia. A fragmentação de rochas por erosão, constante desgaste, de séculos, milénios, conspiração dos mares e dos ventos, até ficarem reduzidas a 0,063 milímetros de dióxido de silício (fui ver à wikipédia…se houver algum geólogo na sala que me contradiga). E depois isto, que é quase nada, revolta-se, e também eles, grãos de areia, por acumulação de todas estas agressões, rebelam-se em fúrias tormentosas, em tempestades de areia tão grandiosas que até são avistadas do espaço. É uma metáfora. Pois… metade das coisas do mundo pode ser metáforas de metade de outras coisas do mundo, por isso não me importo quando alguns grãos de areia - e de metáfora - se intrometem… nas ameijoas, por exemplo.
Mas sim, gosto da fúria do mar, na literatura ou quando a sentimos de um alto de farol (onde eu nunca estive).
Gosto de sítios onde eu nunca estive – se calhar por isso é que gosto deles.
Sou de Lisboa e escrevi sobre o Porto que não conheço, sou da cidade e escrevi sobre o campo que não frequento, sou europeia e escrevi sobre Cabo Verde onde nunca fui, sou mulher e escrevi sob a perspectiva de um homem - que também nunca fui… juro.
Às vezes gosto da distância, para estar perto. É um cliché, eu sei. Os clichés são bons para fazer conversa no elevador.
Gosto de me deslumbrar com vulgaridades, gosto de coisas que têm a grandeza de serem inúteis. Gosto de trocadilhos parvos. Gosto muito dos chamados erros criativos (e eu própria engano-me imenso, portanto gosto genuinamente deles): aqueles conhecidos, como o ‘cherne da questão’, o ‘forno íntimo’, o ‘visto e o ouvisto’, a ‘anormalia’, o ‘bode respiratório’, o menino na escola que uma vez me disse: «O melhor das aulas são os ‘intervais’».
Gosto sobretudo de palavras. Os seus murmúrios, os seus propósitos, os seus misteriosos sentidos. São elas que me inspiram. Gosto da palavra bruxuleante (por causa do Jorge de Sena), gosto muito da palavra «floresta» (não sei bem porquê, talvez porque a pronuncie incorretamente, como se se mantivesse a acentuação do radical flor), gosto da palavra penumbra, gosto da palavra ignomínia, gosto da palavra inquietação, inquietação, na dose dupla do José Mário Branco. Gosto de palavras que ainda não tive oportunidade de usar, como palimpsesto (usei agora). Gosto da palavra útero, embora não compreenda porque é do género masculino - sou contra.
Mas se fosse para a tal ilha deserta com o tal livro debaixo do braço (que maldição!), garanto-vos que o rasgava, folha por folha, para construir barcos de papel – depois arrependia-me.
Gosto de paradoxos. Gosto de contradições. Gosto de redundâncias. Gosto do terreno fecundo da sugestão.
Gosto de pessoas que se arrependem, que pedem desculpa, que não se levam demasiado a sério. Mas não dá para construir um silogismo perfeito porque eu não me levo nada a sério e nem gosto particularmente de mim.
Gosto de pessoas que se sabem rir - rir ‘daquela maneira’, com som, rir alto, rir a bom rir…
Não gosto de pessoas que não se riem, que têm dificuldade em mexer estes músculos faciais (desculpem, não fui ver à Wikipédia como se chamam,), de pessoas sisudas, sensatas, ponderadas, prudentes, maduras, ajuizadas. Gosto de agir duas vezes antes de pensar. Depois também me arrependo.
Não gosto quando me sinto muito pouco contemporânea, quando sinto que não faço parte deste tempo, que isto não me pertence, mas depois penso que gosto demasiado da abolição da escravatura, do fim do apartheid, da pena de morte, e da inquisição, e gosto demasiado da penicilina, da epidural… e por aí fora.
Gosto de música, não saberia viver sem ela. Gosto de descobrir músicas novas, ou então de redescobrir algumas de que já me tinha esquecido.
Gosto de animais de pequeno porte, de animais de médio porte, de animais de grande porte. Podia ter dito logo: gosto de animais. Mas eu disse-vos que gostava de redundâncias…
Gosto do amor, ao próximo e ao distante, mas não gosto dos seus efeitos secundários. Mas isto é muito complexo…
Gosto mais de pessoas, do que aquilo que elas têm para dizer. É uma confissão.
Gosto da felicidade, enquanto conceito – mas não tenho vocação para ela, ou ela para mim.
Gosto do acaso, que leva a mesmas letras que caos.
Gosto da desarrumação, da imperfeição, do defeito, do efeito.
Não gosto de aeroportos, ‘lobbys’ de hotel, pequenos-almoços de hotel, dos mini-bares nos quartos de hotel, de estações de serviço, de estacionamentos, de piscinas, de buracos de cimento no chão com água e cheiro a cloro, de parques com escorregas e piscinas… Não gosto de casas de banho públicas, redacções em open space, lofts, salas de espera. Não gosto de estar à espera, mas faço esperar muita gente. E isto não é um paradoxo, é uma falta de educação minha que eu gostava de corrigir.
Há livros que ouvem e livros que falam, disse-me uma vez Lobo Antunes. Eu gostava, um dia, de escrever um livro que ouvisse.
Não gosto destes seres infestantes das «florestas» (já agora vou usar mais uma vez esta palavra incorrectamente pronunciada), que nos decepam as árvores para dar sol aos arbustos. E que começaram pelas copas, e depois seguem pelas hastes, agora infiltram-se nas raízes, e nos deixam o chão exaurido, carcomido que parece que range debaixo dos nossos pés, a cada passo, como nas casas velhas. Não gosto que nos tirem o chão. Não gosto que nos tirem o futuro, claro, mas o que eles, seres infestantes, nos estão já a tirar é o presente. A próxima hora, o próximo minuto. A cada passo, o chão carcomido…
Gosto da insubmissão, da indignação, embora prefira a gargalhada e a grandolada, à pedrada. Mas confesso que começo a ter um gosto que não tinha - começo a gostar do insulto. E isso é grave. Eu julgo que nunca se insultou tanto em Portugal – sem ser no trânsito, claro.
E então fiz este livro cheio de fúrias, mas fúrias a sério, que naqueles tempos eram pagas com sangue, com dor e com a vida. É a diferença entre seguir por caminhos ou por atalhos. E um livro com um protagonista chamado Joaquim que leva a vida inteira a carregar a fúria do mar às costas. Joaquim, (ou seja, Quim), porta, (ou seja, transporta), a fúria do mar – eu avisei-vos de que gostava de trocadilhos parvos.
Que importa a fúria do mar
E o que importa é a canção que diz
Que a voz não vos esmoreça.
Vamos lutar.
Ana Margarida de Carvalho
Maio, maduro Maio, 2013
Gosto... Foi o melhor Ao Domingo com. que aqui li.
ResponderEliminarGosto do texto, gosto certamente do livro... não gostei foi do facto de ter aumentado a minha já longa lista de livros a comprar mas isso passa-me depressa!
Gosto do facto de ter gostado tanto e também da coincidência de ter o mesmo apelido da autora!
Gosto e pronto!
Parabéns à Margarida e a ti Cris por este momento gostoso :)
Beijinho
Teresa Carvalho
A apresentação do livro foi uma delícia, Teresa! Bj
ResponderEliminar"Gosto da fúria do mar, na música. Gosto da fúria dos ventos, na poesia. Gosto da fúria da areia, nos filmes".
ResponderEliminar... e eu gosto muito da forma como se exprime.
Senti tudo isto que acabei de copiar do seu texto porque logo na primeira vez que pus o pé fora do carro no litoral sul da Bahía no Brasil numa situação muito particular. O vento "picava" o mar e fazia estremecer os palnmeirais. Era um fim de tarde... solitário e quente.
Onde, ou "como" posso comprar o seu livro?
Muito obrigado por tudo o que pude ler. A Cris dá-nos sempre boas surpresas. Excepcionais.
Um Abraço Angolano,
Júlio
Ana Margarida de Carvalho, por um lapso meu ficou uma palavra a mais na minha primeira frase. Desculpe. Por favor ignore o "porque" e já agora também o "n" a mais na palavra "palmeirais". Coisas do teclado! Com estima, Júlio Borges Pereira
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