em torno da minha escrita
Falar de nós próprios é pensarmo-nos. E pensarmo-nos requer mais do que palavras; requer sondar com a alma o insondável que é a alma; requer ouvir atentamente o pulsar do sangue que nos corre nas veias; requer abrir um rasgão em nós. Por isso é tão difícil falarmos de nós. Por isso me é tão difícil falar de mim.
Aos cinco anos já sabia ler e escrever, e desde então pouco mais tenho feito que valha a pena. O meu projeto de vida não foi a escrita: foi a minha família, os meus quatro filhos. Todavia a escrita. Sempre. Li muito menos livros do que os que desejaria ter lido, mas li muitos. Durante largo tempo a minha voz esteve ali, na escrita de outros. E a minha voz própria estava a fermentar, lentamente, lenta, lentamente.
A minha voz teve um longo período de gestação. Claro que as redações na escola primária, sempre elogiadas, tens muito jeito para escrever. Depois, perdoe-se-me o salto no tempo, a escrita académica, os mesmos elogios, você escreve de forma singularmente escorreita, a sua escrita é exemplar. E a minha voz adiada. Não, a minha voz a crescer dentro de mim, a germinar lentamente. Não acredito em escritas repentistas nem em dons inconsistentes. Quando me perguntam qual a qualidade fundamental pare se ser escritor, não tenho dúvidas na resposta: escrever bem, dominar a língua com perfeição. Claro que depois – a nossa voz. A voz que é minha porque dentro de mim germinou.
Escrevo no meu jardim de inverno porque o silêncio e a quietude. Preciso de ouvir as palavras, preciso de estar só para as alinhar, as ajustar, as fazer crescerem num texto – seja longo ou curto. Escrevo e leio o que escrevi e releio e releio. Há música no meu jardim de inverno, e essa música surge quando as palavras se impõem cadentes. Inusitadamente cadentes – porque a minha voz não é a das redações da escola primária nem a dos textos académicos que produzi, embora deles tenha aproveitado alguma coisa que me permite a autovigilância.
De forma singela – perdoe-se-mo – diria que um romance ou um conto (os géneros que cultivo) têm três ingredientes: a história, a estrutura da mesma e a voz com que se a conta. A história em si aparece-me ora inteira e feita ora em pedaços que vou juntando; depois, num processo de fruitivo esforço mental, decido a organização da sequência narrativa; então, a minha voz passa para o teclado do computador. É este o tempo do prazer. Ouvir a minha música no meu jardim de inverno. Não me furto a desconstruir frases que aprendi de maneira canónica, pois a minha voz só me interessa se for toda nova. Apanho algures, entre as minhas plantas e o correr do meu sangue, metáforas acabadas de nascer. Escrevo assim. Consciente e visceralmente. Talvez seja mais certo dizer que a minha voz se vai fixando, num processo que medeia entre o esforço e a naturalidade do respirar.
Paula de Sousa Lima
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